Deixe-me voltar ao começo. Quando o Coldplay lançou seu primeiro disco, Parachutes, eu era um recém-formado advogado, tão incerto do futuro quanto certo de que havia escolhido o rumo errado.
Naquela época, ano 2000, tinha escritório em Campo Largo e fazia audiências trabalhistas regulares em Araucária. Quase nada recordo do escritório, menos ainda das audiências, mas muito da PR-423, que liga as duas cidades da Região Metropolitana de Curitiba, na qual eu ia e vinha escutando aquele CD.
Não raro, eram os melhores momentos do dia, quando minha desorientação e frustração existencial encontravam voz e significado em músicas como Trouble, que revelava que quanto mais eu me debatia na teia de aranha do mundo adulto, mais nela me entranhava, paralisando, como uma mosca a se tornar alimento do predador que nada precisa fazer, apenas esperar a hora certa da desistência do esforço de sua vítima.
Os momentos na estrada, ouvindo o disco de estreia do Coldplay, em 2000, eram os melhores do dia, quando minha desorientação e frustração existencial encontravam voz e significado em músicas como Trouble
O disco, todo melancólico, como eu, consolava-me, mas não somente. Ajudava-me a suportar a falta de sentido na vida, incentivando a não desistir e com isso alimentando minha esperança de que um dia haveria de encontrar algum. De todas as músicas, talvez Everything’s Not Lost seja a que melhor expresse isso: “Então, se você sentir-se negligenciado / [Enquanto] você acha que tudo está perdido / Estarei contando meus demônios, sim / Esperando que tudo não esteja perdido”.
Depois de tantas e más, poucas e boas, encontrei aquele sentido, aprendi a cultivá-lo. Continuo contando meus demônios, pois quem é vivo sempre se perde, mas também sempre se reencontra quando não ignora os anjos que o ajudam a fazer as contas. Coldplay foi um deles para mim, sem exagero. Por isso, quando soube que viriam fazer shows aqui em Curitiba, mesmo há tempos não acompanhando a banda, fiz questão de ir, como ação de graças mesmo.
Acho que parei de acompanhá-los com Viva La Vida, disco de 2008. Não estava mais tão perdido, a melancolia já havia dado lugar para alguma ternura, graças à família em construção – mulher e o primeiro filho –, mas aquela animação, aquela alegria da música, da banda, era demais para mim. O que lançaram depois pareceu seguir na mesma linha, ao menos do que era inevitável escutar em rádios, festas, playlists de bares e restaurantes, não me fazendo voltar a dar atenção.
Sabia, portanto, que o show dificilmente teria muitas músicas “daquele tempo”, salvo as obrigatórias, como Yellow. Também sabia que seria grandioso, mais um espetáculo de som, luzes e pirotecnia do que uma apresentação musical, como de fato foi. A certa altura, porém, suspenderam tudo e foram a um palco secundário nos fundos da pista, desfeito dos salamaleques todos.
Era onde eu estava e de perto pude escutar ao natural o violão de Chris Martin tocando Sparks, das minhas preferidas do primeiro disco, que no contexto do show dava outro significado à letra, como se cantassem para mim: “Eu te afastei? / Eu sei o que você dirá / “Você dirá: ‘Oh, cante uma que nós conhecemos’”. Sim, era o que eu diria, estava dizendo. E por minutos foi como se a PR-423 se apresentasse na luz do fim da tarde, quase sem veículos, salvo o meu, voltando pra casa escutando faíscas de sentido da vida.
Terminado o show, fiquei com a sensação de que havia alguma “música escondida” por vir, como há em Parachutes. Segundos depois de Everything’s Not Lost terminar se escuta Life Is For Living, encerrando o disco assim: “Mas a vida é para ser vivida / Todos sabemos / E eu não quero vivê-la sozinho”. Esses shows do Coldplay são a realização disso, desse viver acompanhado. Daí fazerem a plateia participar tanto, especialmente através das famosas pulseiras.
Voltei para casa mais com saudades das músicas antigas do que maravilhado com o show. Mas não seria a saudade uma forma de participar de algo maior e significativo, fazendo do que não mais existe algo que continua existindo, que não teve, não tem fim?
Lembrei de uma entrevista de Chris Martin quando lançaram o terceiro disco, X&Y. Ao falar sobre uma das músicas, Till Kingdom Come – que era para ter a participação de Johnny Cash, se não tivesse morrido –, o vocalista disse: “Uma das boas coisas de ser obrigado a ir à igreja é que cantamos todas aquelas grandes canções. Isso é parte da razão de eu ser tão obcecado em fazer todo mundo cantar junto nos nossos shows. Faz eu me sentir parte de algo”.
Uma experiência não apenas comunitária, mas quase religiosa, portanto. Não à toa com frequência acontecem pedidos de casamento durante o show, até “chá de revelação” de sexo de bebê, como no dia em que fui (aconteceu na plateia, não no palco). As pessoas se sentem parte de algo maior, mais relevante, mais significativo. Não me senti assim, porém, voltei para casa mais com saudades das músicas antigas do que maravilhado com o show. Mas não seria a saudade uma forma de participar de algo maior e significativo, fazendo do que não mais existe algo que continua existindo, que não teve, não tem fim?
Assim voltei ao começo, revisitando as músicas “daquela época”, mas também decidido a escutar pela primeira vez os discos a que nunca havia dado chance. E aí a “faixa escondida” no show foi se revelando, especialmente com o disco Everyday Life, o penúltimo. Menos radiofônico, com uma forma clara lhe dando unidade. Foi como reencontrar o Coldplay “raiz” em várias das músicas, fazendo do que era “só” saudade uma experiência nova, atual. Acho que Old Friends é a que melhor expressa isso: “O tempo apenas se aprofunda / Adoça e emenda / Velhos amigos / Todos derretemos de volta para a foto / Gotas de chuvas voltando para a água / Velhos amigos / E não há fim para velhos amigos / Amém”.
Saudades de meu compadre falecido com quem adoraria conversar sobre o show. Aliás, saudades de todos os meus mortos, que vieram agora me visitar nesse tempo de repente aprofundado, onde se pode escutar a verdadeira música das esferas que não é outra senão uma oração sendo respondida. Não por acaso quase todas as músicas desse disco têm por tema a relação com Deus, como em Church, BrokEn, que é um hino gospel, When I Need a Friend, também بنی آدم, que contém os versos: “Que haja paz, amor e perfeição em toda a criação, por meio de Deus”, além de Champion Of The World que também principia falando dEle e a última, que dá título ao disco, terminando com vários Hallelujah.
No show não tocaram Amazing Day, uma balada do disco A Head Full Of Dreams, outra que poderia perfeitamente estar nos primeiros discos, mas acho que mais tarde passearei pela PR-423, só para continuar ouvindo quem faz novas todas as coisas: “Pode haver pausas no caos dos tempos? / Ah, graças a Deus! / Deve ter ouvido quando eu rezei / Porque agora eu sempre quero me sentir assim / Um dia incrível / Um dia incrível… todos os dias”.
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