Antes de se entender qualquer fenômeno é preciso descrevê-lo. Quando a nova direita eclodiu como fenômeno político-social resultante das manifestações de 2013, por óbvio suas causas vinham de antes. Em 2018, antes de a campanha eleitoral começar, no início de janeiro, comecei aqui neste espaço a rascunhar ao menos boa parte dessa história, especialmente anterior a 2013.
Não o fiz por ser historiador, cientista político, coisas que não sou, mas apenas como alguém que, por ter acompanhado boa parte dessa história, integrando-a em ínfima medida, testemunhava com receio, como um observador no escritório, quão poucos a conheciam e raros tinham interesse em conhecê-la. Continuei durante o governo Bolsonaro e agora também. E o faço porque, como escrevi na primeira coluna daquela série:
“Se a ‘nova direita’ quiser ser realmente diferente da esquerda gramsciana, tem de começar reconhecendo a verdade de si mesma: não sabe quem é nem o que fazer. Que a oportunidade de ação histórica lhe caiu no colo, mas ela não está preparada para isso. A verdadeira ‘nova direita’ estava e ainda está nas grandes manifestações populares de 2013 em diante: uma massa informe cansada de ser tutelada pela classe política, seja de esquerda ou direita, mas incapaz de se expressar direito, não sabendo bem o que quer porque não sabe nem sequer contar a história direito de como chegamos onde chegamos.”
Das inúmeras manifestações pacíficas desde 2013 à violência do último dia 8 de janeiro, aquele sentimento de insatisfação e descontentamento jamais desapareceu, apenas mudou de alvo
Quem não descobre quem é nem o que fazer fatalmente acabará fazendo o que não se imaginaria fazendo e se tornando quem nunca deveria ser. Das inúmeras manifestações pacíficas desde 2013 à violência do último dia 8 de janeiro, aquele sentimento de insatisfação e descontentamento jamais desapareceu, apenas mudou de alvo. Em 2013 não havia ainda a Lava Jato, que canalizaria esse sentimento em forma de repulsa ao petismo então reinante.
É importante relembrar isso porque a “cola” que uniria a nova direita tempos depois, inclusive na última eleição presidencial, qual seja, o antipetismo, não é definidora de sua essência. E, se a “nova direita” quiser ter sobrevida agora, precisa entender esse sentimento de insatisfação popular mais abrangente, difusa e confusa, gerando pautas muito diversas e sem unidade, o que permitiu, inclusive, que num primeiro e breve momento manifestantes de esquerda e direita estivessem lado a lado em 2013.
As manifestações que seguiram acontecendo nos anos seguintes permaneceram com essa característica central de um descontentamento generalizado, mesmo com o antipetismo se tornando onipresente, tendo unidade mais neste sentimento de insatisfação profunda do que em outra coisa, um sentimento que ia contra a classe política como um todo, contra, vá lá, o “sistema”. Daí a recusa em permitir que políticos participassem dos atos, por exemplo, com um rechaço a bandeiras de partidos.
Por isso mesmo, os novos atores políticos que surgiram eram estranhos ao ecossistema político vigente ou, ainda que há décadas dentro dele, eram mais um corpo estranho tolerado pelos gerentes do poder, como Jair Bolsonaro. Tanto é assim que até hoje essa nova direita vive de aluguel em algum partido, mas não conseguiu criar um para chamar de seu e fazer diferente. O bolsonarismo que se apinhou no PSL em 2018 ocupa agora o PL, cujo “dono” foi um dos envolvidos no petrolão, enquanto há gatos pingados do MBL atualmente no União Brasil, por exemplo, o que dispensa comentários.
Mas a “nova direita” fracassou fragorosamente até aqui ao tentar encontrar uma forma de ser do sistema sendo contra o sistema. Bolsonaro passou seu mandato todo retoricamente continuando a falar como se fosse oposição ao sistema, mas na prática cedendo cada vez mais ao mesmo sistema. Durante seu governo, o ex-presidente foi mais hábil que seus adversários dentro da direita para manter parcela significativa do apoio popular sabendo usar desse sentimento de descontentamento, fazendo parecer ser sempre aquele que tenta fazer a coisa certa, mas não o deixam.
Na sua saída do governo, continuou a usar desse mesmo sentimento de descontentamento, agora com um silêncio decisivo para a manutenção da mobilização de seus apoiadores diante dos quartéis pelo país. Quando ficou claro que Jair Bolsonaro estava literalmente abandonando essas pessoas nas portas dos quartéis e saiu do país, como se não tivesse nada a ver com isso, a frustração se tornou revolta tresloucada que possivelmente se transmutará em rancor contra o próprio Jair Bolsonaro.
A “nova direita”, composta seja por quem for, precisa compreender melhor esse sentimento de insatisfação que transcende esquerda e direita, que é genuinamente popular e seguirá vivo e forte
Para quem enxergava Bolsonaro como um mal para a “nova direita”, o momento pode até ser visto como oportunidade para ocupar o vácuo de liderança por ele deixado até aqui, mas, ainda que Bolsonaro seja defenestrado, não significa que tomarão seu lugar. Para tanto, precisam reconhecer que não souberam lidar com esse sentimento mais profundo de descontentamento popular que os faz vê-los mais como “traidores do movimento” do que uma “terceira via”. A “nova direita”, composta seja por quem for, precisa compreender melhor esse sentimento de insatisfação que transcende esquerda e direita, que é genuinamente popular e seguirá vivo e forte.
O 8 de janeiro pode ter mascarado momentaneamente a realidade e dado a impressão que Lula enfim venceu. Mas em uma semana de seu governo o descontentamento já apareceu e em breve retomará, ainda mais forte e impaciente, pois a pretensão do lulismo é repetir os “erros” do passado, tentando construir o que não deu certo em nenhum país do mundo. É questão de tempo para que a “nova direita” ressurja de onde nunca saiu: de 2013.