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Quando soube que sairia mais um filme contando a história do desastre aéreo ocorrido nos Andes em 1972, que ficou famoso porque, para sobreviverem, os vivos se alimentaram da carne dos mortos, fiquei curioso. Será que enfim contariam a história do que se passou com os sobreviventes depois do resgate, com o retorno à vida? É a parte que falta contar melhor ainda, embora existam livros de alguns deles narrando um pouco disso.
Mas, ao saber que A Sociedade da Neve era focada nos mesmos fatos que os dois filmes anteriores, tendo o mesmo recorte de onde começa e termina a história, sem maiores variações, a curiosidade mudou de pergunta. Por que essa história continua despertando tanta atenção e interesse 50 anos depois? Não faltam tragédias maiores ocorridas neste intervalo para serem trabalhadas no cinema; por que esta mereceria três filmes e mais um sem-número de documentários?
Não que o ocorrido não mereça lembrança. Faço a pergunta porque o canibalismo não me parece mais suficiente a explicar a manutenção do interesse. Não para uma época que derrubou praticamente todos os tabus. Além do que, conhecendo a história, nem mesmo de canibalismo poderíamos chamar o ato dos sobreviventes. Não, pelo menos, com a conotação que o termo possui no imaginário popular. Não houve maldade, nada nem de longe remotamente parecido com um Hannibal Lecter, por exemplo. Foi o último recurso daqueles jovens, cuja decisão foi tomada depois de muita deliberação e sofrimento. E, sejamos honestos, hoje em dia é mais verossímil as pessoas se espantarem por eles terem tido a dúvida moral que por terem de fato comido os mortos.
Não lembrava do quanto a história dos atletas vítimas de um desastre aéreo nos Andes é uma história cristã
A boa receptividade do filme só me fez aumentar a curiosidade para saber por que a história atrai tanto. Decidi revisitar os filmes. Não lembrava do quanto é uma história cristã. No sofrível primeiro filme, de 1976, uma produção mexicana intitulada Survive! (Os Sobreviventes dos Andes) e baseada no livro do jornalista americano Clay Blair Jr., a referência ao Cristo é explícita, não apenas nos grandes crucifixos pendurados nos pescoços de vários personagens, mas pelas orações antes de comer os mortos, associando o fato à Eucaristia, quando se come o corpo de Cristo transubstanciado na hóstia.
Também no segundo filme, Vivos, de 1993, as referências são explícitas e constantes. Já na cena de abertura temos o personagem interpretado por John Malkovich falando do encontro com Deus na montanha. Nos momentos mais difíceis, quando a esperança era mínima, todos rezavam o rosário e, no fim, terminou-se com uma cena panorâmica das montanhas mostrando uma cruz no topo da mais alta delas, enquanto se tocava a Ave Maria.
Em A Sociedade da Neve, logo nas primeiras cenas, temos uma missa com o sermão de um padre falando sobre a passagem dos Evangelhos em que o demônio leva Jesus ao deserto, onde o tentou por 40 dias e 40 noites. É claramente um dos elementos do drama moral vivido pelos sobreviventes que, se não tivessem feito o que fizeram, não teriam sobrevivido mesmo. Teriam pecado? O filme não se faz a pergunta, nem se interessa pela resposta; quer apenas retratar a forma do drama total vivido pelos sobreviventes, o que inclui a dimensão espiritual.
Na vida real, foi grande a discussão surgida quando da revelação dos fatos, ainda mais porque os sobreviventes se justificaram fazendo referência à instituição da Eucaristia na véspera da Paixão de Cristo, bem como ao fato Dele ter sacrificado Sua vida para nos salvar. Disseram isso porque, dos que sobreviveram à queda, todos autorizaram que, caso morressem, os demais poderiam comer sua carne. Segundo noticiário da época, o papa Paulo VI teria enviado um telegrama no qual teria dito que, se não tivessem feito o que fizeram, teriam cometido suicídio. O papa os absolveu. 50 anos depois, outro papa, o atual, enviou uma carta aos sobreviventes, em que disse: “onde a dor e a incompreensão do que foi vivido se transforma, para muitos, num sinal de vida e de esperança”.
Assistindo aos filmes, em especial A Sociedade da Neve, o melhor dos três, é-me impossível imaginar como eu agiria se estivesse no lugar de algum deles. Se teria morrido, recusando-me a comer, como alguns morreram. Se teria aceitado comer sem pestanejar. Se estaria até hoje remoendo a culpa por ter sobrevivido assim. Realmente, não sei. E não gostaria de descobrir a resposta, que Deus me proteja de passar por algo semelhante.
Não é a história quem atrai, mas sua luz, sinal de vida e esperança, como disse o papa Francisco, mesmo em meio à dor e a incompreensão
Na abertura do filme, o narrador, que é um dos que morreram na montanha, refere-se ao fato dizendo que alguns consideram o que lá ocorreu como uma tragédia, enquanto outros, um milagre. Dentre os últimos está Nando Parrado, um dos sobreviventes que publicou um livro em 2006 intitulado justamente O Milagre dos Andes, que assim considera não por ter sobrevivido, mas por não ter perdido a fé mesmo vivendo o inconcebível. Talvez sua fé não tenha sido tanta a ponto de mover montanhas, mas certamente as montanhas lhe deram uma fé tão firme e inamovível quanto elas.
Essa presença constante da fé (e de Deus) é muito bem simbolizada no filme pela luz. O tempo todo se chama a atenção para sua presença, inclusive tornando a lente que filma como sendo um dos personagens. Aqueles pontos brilhantes aparecendo na tela em várias das cenas por sobre as montanhas ou de frente para o sol, e que estragariam qualquer filmagem, são muito bem aceitas e utilizadas para tornar a luz uma presença que deve ser notada, um protagonista. Mesmo no pior momento vivido, quando estão debaixo da neve depois de uma avalanche, a luz aparece, ainda que fraca, com um deles dizendo: “Se entra luz, não estamos tão fundo”.
E acho que isso responde à minha pergunta, da razão de essa história ainda chamar a atenção. Porque não é ela quem atrai, mas sua luz, sinal de vida e esperança, como disse o papa Francisco, mesmo em meio à dor e a incompreensão. E se ela ainda entra, é porque não estamos tão fundo, graças a Deus. Eis aí um belo filme quaresmal.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos