A literatura brasileira inteira é de série B, talvez C. Nem adianta brigar comigo, quer reclamar se dirija ao túmulo do Antônio Cândido. Está lá no prefácio da 1.ª edição de sua obra mais famosa, Formação da Literatura Brasileira. Aliás, está num parágrafo tão bom que vale a pena citar na íntegra:
“Comparada às grandes, a nossa literatura é pobre e fraca. Mas é ela, não outra, que nos exprime. Se não for amada, não revelará a sua mensagem; e se não a amarmos, ninguém o fará por nós. Se não lermos as obras que a compõem, ninguém as tomará do esquecimento, descaso ou incompreensão. Ninguém, além de nós, poderá dar vida a essas tentativas débeis, outras vezes fortes, sempre tocantes, em que os homens do passado, no fundo de uma terra inculta, em meio a uma aclimatação penosa da cultura europeia, procuravam estilizar para nós, seus descendentes, os sentimentos que experimentavam, as observações que faziam, dos quais se formaram os nossos.”
Não só ler as obras dos homens do passado, também as do presente. Lembrei-me dessa passagem do livro de Cândido lendo À Sombra do Pai, romance de Luiz Cezar de Araújo que acaba de ser lançado pela editora Danúbio. Porque é um livro tocante, comovente, no seu esforço de impedir o esquecimento, o descaso e a incompreensão da própria história familiar, aqui romanceada.
A impermanência, aliás, é o grande tema da literatura brasileira desde sua origem. Não me refiro à chamada “literatura informativa” daqueles que apenas comunicavam a Corte Portuguesa do que descobriam por aqui. Tampouco me refiro à literatura catequética, porque também tinha finalidade outra para além da literária. Salvo uma obra escrita na areia de uma praia e apagada todos os dias pela maré e que é, para mim, nossa primeira obra literária digna de ser assim chamada.
Trata-se do Poema à Virgem, de São José de Anchieta. Nele, São José não fala aos índios que tanto amava e convertia, tampouco aos seus patrícios a quem pastoreava. Fala à própria alma, abandonada em sono profundo, despertando-a para mirar Nossa Senhora diante do calvário do Filho, perguntando: “Não te move a aflição dessa mãe toda em pranto, que a morte tão cruel do filho chora tanto?” E seguem-se versos dessa alma a acompanhar os suplícios de Cristo e a dor da Mãe, sendo convocada a “Ergue-te pois e, atrás da muralha ferina cheio de compaixão, procura a mãe divina”.
O que torna a obra ainda mais simbólica, arquetípica mesmo para todos nós, brasileiros, é que São José de Anchieta a compôs nas areias da praia de Iperoig em Ubatuba (SP), quando esteve refém dos índios tupinambás. Todos os dias escrevia alguns versos na areia, memorizando-os, porque a maré subia e apagava. No dia seguinte reescrevia tudo, acrescentando novos versos. Assim fez por dias, até terminar e decorar todo o poema que só veio a ser registrado em papel algum tempo depois.
Ou seja, a literatura brasileira nasceu lutando contra sua própria impermanência. Não creio exagerar ao dizer que é por isso mesmo que se trata do tema mais recorrente em toda sua história, do que há dois exemplos emblemáticos. O famoso final de Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, nosso escritor maior: “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria”. E o verso igualmente famoso de um de nossos poetas maiores, Manuel Bandeira: “A vida inteira que poderia ter sido e não foi”.
Luiz Cezar de Araújo, com este seu À Sombra do Pai, acrescentou mais um capítulo a esta história de impermanência, filiando-se à linhagem de José Lins do Rêgo, por mais de um motivo. Lins do Rêgo começou sua vida literária compondo uma trilogia retratando a debacle dos engenhos de cana de açúcar da Paraíba e Pernambuco, contada por um vocacionado a escritor, mas impotente de tudo, inservível para o destino que escolheu e desacreditado da vocação que sempre esteve diante de si e jamais foi assumida.
O tom de toda a trilogia é o da tristeza diante da perda sempre próxima, até que consumada. A impermanência da toda uma tradição, de uma família, terminando em nada, sem som nem fúria, apenas com o lirismo melancólico de alguém débil, como se visse o mar apagando sua vida esculpida em areia…
Em À Sombra do Pai temos o mesmo. Um menino também impotente diante da tragédia familiar, desorientado, sabendo que tudo irá se acabar e tentando guardar na alma o máximo possível enquanto vive os últimos momentos. E o ardor com que vive cada experiência, com que retém cada instante na memória, impacta o leitor que, em alguns momentos, sente-se na fazenda São João tal como o protagonista. Destaco em especial a cena da ordenha das vacas, primorosa, a melhor passagem do livro.
Além disso, com À Sombra do Pai vemos que o regionalismo de Lins do Rêgo não é tão regional assim, mas brasileiro, pois a mesma realidade sertaneja se encontra no interior de Santa Catarina retratado no livro de Luiz Cezar, onde se passa a maior parte da história. Há também aqui, como em Lins do Rêgo, o contraste entre a vida sertaneja e a urbana, que se lá aparece entre o engenho e Recife, em O Moleque Ricardo, aqui aparece entre a fazenda e Camboriú.
A impermanência trágica se completa na última frase do romance, que despenca – uso o verbo com precisão aqui – com o peso da terra a soterrar definitivamente um caixão. Não à toa veio destacada em parágrafo próprio. O efeito causado é dissolvente de toda a ternura lírica de antes para terminar aparentemente com uma impassibilidade erguendo uma “muralha ferina” contra o passado. Seria isso?
Quem leu o primeiro livro do autor, A Vida é Traição, é tentado a concluir assim. A ironia, o sarcasmo, a língua ferina e pessimista dos narradores dos contos parece ir nesse sentido mesmo. Mas neste romance há algo que fica à sombra durante toda a narrativa e que dá todo significado à obra. Trata-se do salmo 90, indicado pela mãe do protagonista no início do romance e que ela pede para que não seja esquecido: “Tu que vives sob a proteção do Altíssimo, que moras à sombra do Onipotente…” Se o leitor não o esqueceu, então a tragédia final pode se transmutar em comédia, exatamente como no Poema à Virgem, de São José de Anchieta:
Refugiam-se a ti os que o mau pisa e afronta:
mas tu a todo o mal és medicina pronta!
Quem se verga em tristeza, em consolo se alarga:
por ti, depõe do peito a dura sobrecarga!
Por ti, o pecador, firme em sua esperança,
sem temor, chega ao lar da bem-aventurança!
Por isso, se estou certo ao dizer que o arquétipo de nossa literatura está em São José de Anchieta e a feitura de seu poema nas areias da praia, então está aí também a solução de nossa impermanência, do nosso esquecimento recorrente de nós mesmos, de quem fomos, de quem somos, do que fizemos, do que lemos. Porque nada foi perdido, tudo ainda permanece, basta trazermos de novo à luz o que jaz à sombra do Pai.
O livro de Luiz Cezar de Araújo é digno representante desse esforço comovente de resgatar a vida inteira que poderia ter sido e não foi, de assumir o legado da sua miséria familiar e transmiti-la em forma de arte, mesmo sabendo que a maré, no Brasil, sempre apaga tudo. Não importa, quando se mora à sombra do Onipotente que faz novas todas as coisas.
PS: Aos interessados, o romance será lançado nesta sexta-feira, dia 15, aqui em Curitiba, na Livraria da Vila, no Shopping Pátio Batel, às 19h30, com um bate-papo com o autor. Lá estarei, aliás.
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