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Francisco Escorsim

Francisco Escorsim

Literatura

A trégua do cronista

O Palacio Salvo, em Montevidéu. (Foto: pirizluz/Pixabay)

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“Oito da manhã. Estou tomando o café-da-manhã no Tupí. Um dos meus maiores prazeres. Sentar-me junto a qualquer uma das janelas que dão para a Plaza. Chove. Melhor ainda. Aprendi a gostar desse monstro folclórico que é o Palácio Salvo. Não é sem razão que ele figura em todos os cartões-postais para turistas. É quase uma representação do caráter nacional: rude, deselegante, espalhafatoso, simpático. É tão feio, mas tão feio, que deixa a gente de bom humor.

Gosto do Tupí a esta hora, bem cedo, quando ainda não o invadiram os maricas (eu tinha me esquecido de Jaime, que pesadelo) e só há um ou outro velho isolado, lendo El Día ou El Debate com inacreditável fruição. A maioria é de aposentados que não conseguiram se livrar dos hábitos madrugadores. Continuarei vindo ao Tupí quando me aposentar? Não poderei me acostumar a desfrutar da cama até às 11, como um filho de diretor qualquer? A verdadeira divisão das classes sociais deveria ser feita levando em conta a hora em que cada um salta da cama.

“Para ver os jornais, é preciso baixar os olhos.”

Martin Santomé, personagem do romance A Trégua, de Mario Benedetti

Aí vem Biancamano, o garçom amnésico, eficientemente cândido e risonho. Pela quinta vez, peço-lhe um café pingado pequeno com pãezinhos meia-lua, e ele me traz um café grande com traviatas. Sua boa vontade é tanta que eu me dou por vencido. Enquanto jogo os tijolinhos de açúcar na xícara, ele me fala do tempo e do trabalho. ‘Esta chuva incomoda as pessoas, mas eu digo: Estamos no inverno ou o quê?’ Eu lhe dou razão, porque é evidente que estamos no inverno. Depois Biancamano é chamado por um senhor da mesa do fundo, muito aborrecido porque nosso garçom lhe trouxe algo que ele não tinha comandado. Esse aí é um que não se dá por vencido. Ou talvez seja um mero argentino, que veio fazer seu negocinho semanal de dólares e ainda não conhece os costumes da casa.

Na segunda parte do meu festim, entram os jornais. Há dias em que compro todos. Gosto de reconhecer suas constantes. O estilo de cabriola sintática nos editoriais de El Debate; a civilizada hipocrisia de El País; a maçaroca informativa de El Día, só aqui e ali interrompida por uma ou outra alfinetada anticlerical; a robusta compleição de La Mañana, vaquinha de presépio que só ela.

Como são diferentes e como são iguais! Entre eles, jogam uma espécie de truco, enganando uns aos outros, fazendo-se sinais, trocando de parceiros. Mas todos se servem do mesmo maço, todos se alimentam da mesma mentira. E nós lemos, e, a partir dessa leitura, acreditamos, votamos, discutimos, perdemos a memória, esquecemos generosa e cretinamente que eles hoje dizem o contrário de ontem, que hoje defendem ardorosamente aquele de quem ontem disseram coisas terríveis, e, o pior de tudo, que hoje esse mesmo aquele aceita, orgulhoso e ufano, essa defesa.

Por isso prefiro a assustadora franqueza do Palacio Salvo, porque ele sempre foi horroroso, nunca nos enganou, porque se instalou aqui, no ponto mais concorrido da cidade, e há trinta anos nos obriga a todos, naturais e estrangeiros, a erguermos os olhos em homenagem à sua feiura. Para ver os jornais, é preciso baixar os olhos.”

Eis a entrada de 26 de julho, possivelmente de 1957, do diário do personagem Martin Santomé, do romance A Trégua, de Mario Benedetti. O Palacio Salvo fica em Montevidéu, assim como o café Tupí e todos os jornais citados.

Estou com essa passagem há semanas na cabeça pensando em comentar por aqui, fazendo todos os paralelos inevitáveis com nossos jornais, nossos monumentos de feiura (oi, Brasília), os cafés-da-manhã, em casa ou fora, a solidão observadora, os preconceitos só confessados para si no útero de um diário, mas a verdade é que não quero estragar a trégua que a literatura deu ao cronista cansado de ser obrigado a baixar os olhos.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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