Procurava eu por indicações de algo bom para assistir no mar de serviços de streaming hoje disponíveis quando me deparei com alguns cinéfilos e críticos de cinema afirmando a mesma coisa sobre o documentário Val, produção da Amazon, contando a história do ator Val Kilmer: “É bom, mas muito triste”.
Esse “muito triste” me intrigou, pois eu sabia da história do câncer na garganta do ator, mas também que ele havia sido curado. Como uma cura do câncer, algo impossível de não ser abordado no filme, seria retratada como algo “muito triste”? Lá fui eu conferir o documentário, mas não achei triste, talvez um tanto desconfortável pela honestidade com que Val se permitiu retratar, fazendo com que o princípio de redenção no fim tenha um gosto agridoce.
Há um narcisismo puro em Val Kilmer que, por consequência, foi o motor principal de sua ambição de ser mais do que um grande ator, mas dos maiores, sempre protagonista se possível
Como esperado, a superação do câncer serviu de mote principal para contar a história de sua vida. Praticamente todo o filme foi montado com cenas gravadas pelo próprio ator que, desde muito jovem, já tinha uma câmera de vídeo que a tudo registrava. E tudo guardou. Nas primeiras cenas conhecemos um galpão imenso onde se mostra a quantidade de filmes, fitas, papéis e outros objetos conservados por Kilmer. É como se desde sempre ele estivesse preparando um filme da sua vida, que agora enfim gravou.
Quase tudo parece aleatório, tendo sido filmado pelo simples prazer de registrar, tornando-se algo como um diário sem propósito, assim como as cenas atuais filmadas com seus filhos, pretensamente domésticas, mas nitidamente posadas. Ou seja, há um narcisismo puro em Val Kilmer que, por consequência, foi o motor principal de sua ambição de ser mais do que um grande ator, mas dos maiores, sempre protagonista se possível.
A isso deve a dedicação e o esforço para conseguir bons papéis e a entrega impressionante para alguns deles, como o de Jim Morrison, no filme The Doors, de Oliver Stone, cuja preparação ocupa parte considerável do documentário. Também por causa disso era um ator difícil de lidar, tendo angariado boa dose de brigas e confusões com diretores e colegas, além da hoje ex-esposa, que também era atriz, e que não aparece no documentário, demonstrando que a relação se deteriorou para muito além do período de casados.
O documentário vai sendo costurado com ele falando sobre as sequelas deixadas pelo câncer, como a voz robótica por ter tirado a garganta, e o sentimento ambíguo de hoje viver do passado, fazendo turnês vendendo fotos e fazendo aparições, o que lhe deixa triste por acreditar que é uma venda do seu eu do passado, mas ao mesmo tempo agradecido pelos fãs que tanto carinho lhe demonstram.
Durante todo o filme oscilamos entre a compaixão pela situação de Kilmer e o desconforto pela presença incômoda de sua vaidade, ainda viva. Mas isso só é possível pela honestidade com que ele se expôs
Quando descobriu o câncer, Val estava próximo de realizar um grande feito, tendo vendido tudo que tinha para pagar dívidas e levantar dinheiro para transformar em filme sua peça sobre o escritor Mark Twain, que levou anos escrevendo e encenava viajando pelo país em turnês teatrais. Pelo que se entrevê das cenas no documentário, seria provavelmente a melhor atuação de Kilmer nos cinemas, o papel que, como ele mesmo disse, sentia que estava destinado a interpretar, o seu maior feito, infelizmente impedido pela doença. Teve de encarar o fato de que talvez sua carreira tivesse chegado ao fim e, sem ela, restavam as trevas da sua vaidade.
É impossível desviar o olhar da vaidade de Kilmer, que o torna antipático. Durante todo o filme oscilamos entre a compaixão por sua situação e o desconforto pela presença incômoda de sua vaidade, ainda viva. Mas isso só é possível pela honestidade com que ele se expôs, especialmente nos dez minutos finais, que tratam da descoberta da doença e sua superação, que começou ainda no hospital, voltando a desenhar e pintar, tal como fazia quando criança.
A cura do câncer parece estar quase completada, mas a da vaidade ainda está no começo, e toda a história é contada à luz do remédio que a cura. Na melhor fala do filme, ele disse: “Aqui na Terra a distância entre o Céu e o Inferno é a distância entre a fé e a dúvida. Não tenho dúvida, por exemplo, de que minha doença impossibilitou oportunidades profissionais que não eram oportunidades reais. A cura não nasce da vaidade, mas da honestidade. A honestidade nasce do amor puro. E o amor é o remédio mais divino, o mais doce, o mais sagrado e o mais efetivo”.
E aí, quando vamos procurar esse amor é que nos damos conta do significado da proximidade dos filhos. A filha mora literalmente na porta ao lado, dividindo a varanda; o filho é o narrador que lhe deu voz no filme. O abraço final entre eles, depois de ele narrar que Val se sentia abençoado, retrata esse amor curativo que fez brotar a honestidade com que se expuseram no documentário, que incomoda porque o fedor da vaidade ainda está próximo demais, mas não o suficiente para sufocar seu remédio.
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