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Francisco Escorsim

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Adele quer salvar vidas

A cantora Adele. (Foto: Facebook/página oficial)

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“E realmente acho que algumas das canções deste álbum podem ajudar as pessoas, realmente mudar suas vidas. E penso que uma música como Hold On pode de fato salvar algumas vidas. Eu realmente, realmente acredito nisso”, disse Adele sobre seu novo disco, 30. Ajudar as pessoas, mudar suas vidas, salvá-las... Haja pretensão, hein, Adele?

Mas vamos lá. Ajudar em quê, exatamente? Todos os discos dela são titulados com sua idade ao gravá-los, com as capas sendo fotos de seu rosto e as letras todas muito pessoais, falando de sua vida, suas dores e alegrias. Tudo muito autorreferente, mas demais mesmo, como em 30, colocando gravações de conversas com seu filho e falas suas chorando por mais uma frustração amorosa. Precisava, Adele?

Segundo a artista, o disco lhe serviu como forma de catarse para superar o fim do seu casamento com o pai de seu filho, com as músicas sendo ordenadas no álbum com um sentido cronológico, como se contasse a história dessa superação de quem foi ao inferno e voltou. E é escutando-as nesta ordem que ela acredita poderem servir de ajuda a outros. Por isso, brigou com o Spotify para que permitisse que mesmo não assinantes pudessem escutar o álbum nesta sequência (quem não é assinante podia escutar tudo, mas em ordem aleatória). A empresa acatou.

Adele sacrifica o próprio filho pela busca do amor maior, como se fosse Abraão aceitando sacrificar o filho porque Deus mandou. E não seria justamente Deus quem estamos buscando ao querer “amar na mais alta conta”?

A primeira música do disco, Strangers By Nature, serve como introdução e carta de intenções. Ela inicia cantando que levará flores para o cemitério do seu coração, para todos os seus amores do presente e os ainda na escuridão, esperando com isso um dia aprender a se nutrir do que já fez e viveu, terminando com “vamos lá, estou pronta”.

Vem, então, o primeiro single do disco, Easy On Me, na qual canta tanto para o ex-marido quanto para seu filho, dizendo àquele que desistiu de tentar e, para este, que “pegue leve” com ela, justificando-se por ter desistido do pai dele. Ela segue falando ao filho em My Little Love, lidando com sua culpa por fazê-lo sofrer. É uma ferida exposta, como se vê pelos trechos de conversas com o filho, em um deles com ela chorando. Há uma tentativa de ter esperança, ao mesmo tempo que a culpa a consome.

Vem Cry Your Heart Out, o fundo do poço depressivo pelo divórcio e o sofrimento do filho que vai descrito na letra: “Eu criei essa tempestade, é justo que eu tenha de ficar sentada na chuva”. Mas na música, a mais alegrinha até aqui, já se vislumbra o fim do choro e um levantar-se do chão, retratado na dançante Oh My God, representando o “cair na balada”, a busca por diversão e sexo casual, mesmo sabendo ser errado, pedindo a Deus que não a deixe cair.

Como sempre, esse “estilo de vida” enjoa rápido e em Can I Get It já a vemos procurando algo melhor, um novo amor: “posso ter agora?” Aplicando-se o conceito “clássico” de álbum, teríamos aqui o fim do Lado A. Com I Drink Wine, das melhores do disco, com uma levada à la Elton John e Barry Manilow, temos uma Adele mais reflexiva, fazendo-se perguntas e percebendo que precisa se superar, parar de tentar ser outra pessoa.

Mas quem seria Adele? Em outra entrevista, disse: “Eu realmente não me conhecia. Pensei que conhecia. Não sei se por causa do meu retorno de Saturno ou por estar chegando aos meus 30 anos, mas eu simplesmente não gostava de quem estava sendo”. Ao fim de 30, ela teria se conhecido, enfim?

Quem sabe um dia Adele descobrirá que seu desejo por tanto amor nada mais é do que a esperança no advento Daquele que veio, vem e virá para nos ajudar, mudar quem somos e salvar nossas vidas

Em All Night Parking, canta sobre uma nova paixão surgida em meio ao processo, que não vingou, mas foi importante para a superação do divórcio, voltando a se sentir amada. Mas para seguir em frente era preciso dar um ponto final interior em relação ao divórcio e isso acontece em Woman Like Me, em que despeja sua raiva e frustração contra o ex, ao mesmo tempo que revela uma soberba, colocando-se como alguém maior e melhor, razão pela qual ele não estaria à altura de “uma mulher como eu”.

Resolvida com o fim do casamento, vem o vazio do presente que precisa ser preenchido com a esperança de um dia voltar a amar e ser amada como acredita que merece. Hold On tem uma atmosfera gospel com o coral sendo formado por seus amigos cantando para ela aguentar o tranco, que logo o amor viria visitá-la.

Resta, então, resolver-se com o filho. Vem To Be Loved, em que canta diretamente para ele, imaginando-o com 30 anos, quando espera que então entenda a escolha que fez. Há versos aqui muito reveladores de quem Adele, se ainda não é, gostaria de ser: “Que fique sabendo que eu chorei por você, até comecei a mentir para você. Que coisa para se fazer... Tudo porque quis ser amada e amar na mais alta conta, o que significa perder todas as coisas sem as quais não se pode viver. Que fique sabendo que eu escolherei, que eu perderei. É um sacrifício, mas não posso viver uma mentira. Que fique sabendo que eu tentei, que eu tentei”.

“Tudo porque quis ser amada e amar na mais alta conta.” Amar e ser amada por quem? Quem seria capaz de preencher o outro desta maneira? Seja quem for, Adele sacrifica o próprio filho pela busca desse amor maior, como se fosse Abraão aceitando sacrificar o filho porque Deus mandou. E não seria justamente Deus quem estamos buscando ao querer “amar na mais alta conta”? Não seria somente Ele capaz de nos preencher desta forma com tanto amor?

Na última música, Love Is A Game, ela reconhece a impossibilidade de um amar humano nesta mais alta conta (“todas as suas expectativas do meu amor são impossíveis” e “nenhuma quantidade de amor pode me deixar satisfeita”), o que faz do amor de quem procura esta tão alta conta um “jogo para tolos jogarem” e que ela é tola assim por se infligir essa dor, mas que continuará assim, buscando esse amor impossível, amando hoje como amou antes. Ué?!

Pois é, saímos do cemitério do coração de Adele com a sensação de “quase”. Ela ainda não aprendeu a se nutrir do que viveu, fazendo da catarse não uma cura, mas um reforço da doença do amor-próprio desmedido. Qual a chance de os próximos amores terminarem de forma diferente? Quase nenhuma, salvo se o objeto deste amor na mais alta conta for realmente o da mais alta conta. Só Deus pode nos amar assim. Quem sabe um dia Adele descobrirá que seu desejo por tanto amor nada mais é do que a esperança no advento Daquele que veio, vem e virá para nos ajudar, mudar quem somos e salvar nossas vidas.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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