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Dos efeitos colaterais de 2020: bagunçou nossa noção cíclica do tempo. Chegava esta época do ano, em todos os anos, e lá íamos nós no “automático” encerrar as coisas, ainda que não precisassem ou pudessem ser encerradas; fazer balanços, ainda que não fosse o momento particular para isso; sentir o cansaço que, na verdade, nunca foi descansado; e comparecer às reuniões de amigos, familiares, celebrações de Natal.
Mas em 2020 vivemos como se tivéssemos saltado de um Natal a outro e o que houve entre ambos foi nada além de espera em espera, tornando os rituais de fim de ano algo bem diferente; no mínimo, não mais tão automático. Desconfio ser esta, aliás, uma das razões para o sucesso do filme brasileiro Tudo bem no Natal que vem, lançado há poucos dias e rapidamente se tornando o terceiro mais assistido na Netflix no mundo todo. Porque a história é sobre um sujeito que, no dia do Natal, não lembra de nada do que viveu no ano. Entre não lembrar e parecer que não viveu, não vai longa distância.
2020 pode se tornar uma grande bênção, a maior de várias gerações, para quem tem ouvidos para ouvir a voz solitária no deserto da sua alma
Por isso, tal como no filme, o desarranjo temporal deste ano tem ao menos uma vantagem, uma considerável vantagem, uma significativa vantagem: dá oportunidade de olharmos para nossa vida não como quem está nela imerso, mas como quem foi dela arrancado e largado num deserto temporal em que o tempo passa, mas não passa, e o sentido mesmo de estar vivo se torna uma ordem. Como no poema Os ombros suportam o mundo, de Drummond: “Chega um tempo em que a vida é uma ordem / A vida apenas, sem mistificação”.
Porque no deserto há sempre uma voz clamando: “endireitai as suas veredas”. Acho que todo mundo sabe do que João Batista está falando ao rogar para endireitarmos nossos caminhos de vida para preparar a vinda do Senhor, mas o que me intriga é: por que João Batista foi ao deserto pregar e não às cidades onde os caminhos estavam tortos? Talvez porque nas cidades fosse inútil. Talvez porque lá todos estão surdos. Talvez porque só nos momentos de deserto caia a ficha do quanto precisamos mudar de vida mesmo.
E aí 2020 pode se tornar uma grande bênção, a maior de várias gerações, para quem tem ouvidos para ouvir a voz solitária no deserto da sua alma. Por termos sido tirados do tempo do relógio para este outro em que tudo é espera, tudo o que era clichê pode se tornar vivo novamente. Não há nada no filme brasileiro que não tenha sido dito e mostrado mais e melhor em trocentos outros filmes natalinos já feitos, mas poucos tiveram um público tão necessitado do que ele traz. Não acho que o filme seja tão bom, nós é que precisamos desesperadamente de algo que ele entrega.
O incansável Paulo Polzonoff praticamente esgotou o que teria para ser dito sobre a obra em uma de suas crônicas aqui na Gazeta do Povo, não há por que chover no molhado a respeito, a não ser remeter o leitor para lá. Por aqui, fico no deserto em que o protagonista ficava, quando só e tudo que ele tinha de verdade era o Natal, com tudo o mais sendo uma lembrança emprestada. Todo pai, e sou um também, identifica-se com o drama do personagem, com a falta de tempo para os filhos e a família pelo trabalho que consome o tempo, a ganância que faz perder o que se ganha. E, se algo nos faz pausar o ritmo da vida, descer do tempo dos afazeres e simplesmente passar um tempo maior em casa, em família, temos algo para agradecer em 2020. E muito, até.
E esta é, para mim, a grande beleza do Advento: elevar o tempo do relógio ao Eterno. São duas semanas em que a liturgia se concentra no fim de tudo, no Apocalipse, na necessidade de darmos jeito à vida, endireitando a nossa alma para, nas duas semanas seguintes, sermos aos poucos tomados pela alegria do parto que se aproxima. Todo pai, toda mãe, sabe do que falo. Apesar de todo o medo, de todas as mudanças, da incerteza completa, dos dramas e sofrimentos da vida, nada disso importa, nada disso abafa, nada disso sufoca a alegria pelo filho que está para nascer. Uma alegria que só aumenta à medida que o dia do parto se aproxima.
Uma alegria que não se confunde com aquelas momentâneas, de prazeres satisfeitos, mas que liberta inclusive dos prazeres, dando outro sentido e significado à vida, tornada uma ordem, sem mistificação. Como disse Chesterton, no seu texto O espírito de Natal: “Mas que exista uma noite que as coisas brilhem desde dentro: e um dia que os homens procurem por tudo que está enterrado em si mesmos, e descubram – no lugar onde ele está realmente escondido, por trás de portões trancados e janelas cerradas, por trás de portas três vezes trancadas e aferrolhadas – o espírito de liberdade”.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos