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Francisco Escorsim

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“After Life”: o túmulo nunca será o fim

Cena da terceira temporada de After Life. (Foto: Divulgação/Netflix)

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Precisando de uma dose de alento? Assista a After Life, seriado criado e dirigido por Ricky Gervais, cuja terceira e última temporada foi lançada há poucos dias na Netflix. Devo ter escrito sobre temporadas anteriores por aqui, mas estou de “férias”, logo com passaporte sanitário para preguiça de procurar.

Caso não saiba, a série é sobre o luto. Sim, de novo. Falo bastante sobre isso por aqui (e fora daqui), eu sei. E continuarei a falar, como o protagonista do seriado que não se “desapega” do seu. Por um bom motivo. Não, não é só bom, é pelo único motivo que realmente importa nesta vida.

O seriado ajuda a entender a razão disso, dessa “obsessão”, especialmente na certeira cena final cujo sentido e significado só é possível de ser compreendido por quem conviveu com Tony por todas as curtas temporadas (são seis episódios cada, de meia hora de duração). A partir daqui, esteja avisado, virão spoilers.

É raro ver uma escolha como a de Tony pela aparente solidão ser considerada um “final feliz”. E é, ainda que agridoce

Tony perdeu sua esposa, sua alma gêmea, o amor de sua vida, sua alegria de viver. Não, não são sinônimos. A esposa morre, a alma gêmea se separa, mas o amor permanece, fazendo da alegria motivo de tristeza de viver.

Na primeira temporada, a autopiedade dá o tom, com sua raiva dirigida contra tudo, todos e a si mesmo, querendo se matar, só não fazendo isso pelo amor por sua cachorra. A partir da segunda vem uma nova fase, tentando fazer da empatia uma forma de suportar a existência. Na terceira, quando o clichê estava na cara do gol sem goleiro, podendo finalizar com um “progresso”, com Tony seguindo em frente, dando nova chance ao amor, não é isso que acontece. Ainda bem.

Não que o fim seja surpreendente. É até o contrário. Quem vive o luto entende perfeitamente aquele final. E agradece, porque é raro ver uma escolha como a de Tony pela aparente solidão ser considerada um “final feliz”. E é, ainda que agridoce.

Solidão, aliás, é tema recorrente na produção de roteirista de Gervais. Na aclamada série de comédia The Office, por exemplo,em que foi roteirista e diretor de vários episódios, a solidão dos personagens é o que explica muito da sua falta de bom senso cujas consequências são os constrangimentos por que passam.

Também explica por que são tão comoventes as cenas quando esta solidão é preenchida, como na cena em que Jim e Pam descobrem que serão pais, ou nos momentos de bom senso de Michael e quando encantado por Holly, por exemplo. Cenas cuja delicadeza e sensibilidade parecem “incompatíveis” com o que o seriado parece ser, mas é o que o tornam melhor que uma sitcom comum.

Em After Life, essa dinâmica da solidão retorna; basta ver as pessoas entrevistadas buscando ser notícia no jornal em que Tony trabalha. Todos querendo preencher sua solidão com algo que parece significativo, mas é apenas constrangedor, motivo mais de riso e chacota do que outra coisa. Mas aqui a sensibilidade e delicadeza diante do desamparo humano estão presentes o tempo todo, dando o tom do seriado e o tornando muito diferente da forma de The Office. Ou seja, o que seria motivo de constrangimento se torna causa de compaixão.

O luto é uma escola de amor que nos ensina que o túmulo nunca será o fim

Compaixão conquistada desde o início de cada episódio, já que quase todos começam com ele assistindo a algum vídeo de sua falecida esposa. Vídeos gravados por ele do cotidiano da vida em comum, fazendo o espectador adentrar na intimidade feliz do casal, o que cria uma conexão imediata com a dor de Tony por tê-la perdido, sendo devolvido a uma solidão aparentemente insuportável que faz de todo contato externo com o mundo uma tortura. É por essa compaixão que aceitamos e entendemos sua impaciência, por vezes crueldade, com colegas de trabalho e outras pessoas em geral na primeira temporada.

É também o que torna sua decisão de ajudar o próximo, seja quem for, mais significativa e comovente. É algo que, no começo, alivia sua dor, mas que aos poucos vai preenchendo a solidão, mais ainda dos que estão à sua volta, que vão conquistando amigos, amores, confidentes. O uso da trilha sonora, o flanar pela cidadezinha fictícia de Tambury, quase sempre ensolarada, destoando do típico cenário inglês, vão mergulhando o espectador cada vez mais na transfiguração da dor e da solidão causada pelo luto em comunhão pelo amor, que precisa da empatia para se colocar no lugar do próximo, começa pela compaixão consequente e se transforma em comunhão criadora ou restauradora de uma comunidade.

Daí por que o fim do seriado é feliz, ainda que Tony permaneça sozinho. Todos terminam bem, inclusive ele, que não optou por viver “preso” ao passado, mas “crucificado” no amor. A cena final com ele saindo sozinho com sua cachorra, daí aparecendo a imagem de sua falecida esposa como se estivesse de mãos dadas com ele, para em seguida sumir novamente, daí a cachorra desaparecendo e por fim o próprio protagonista nos deixando por segundos preciosos diante da natureza aparentemente vazia, é brilhante para fazer o espectador experimentar as imagens da memória como ponte para a Eternidade, para o que não morre com a morte e segue sendo tão ou até mais real.

A cena me lembrou um trecho magistral de Ravelstein, romance de Saul Bellow: “No entanto, ele tinha me perguntado como eu imaginava que a morte seria, e quando eu disse que as imagens iriam cessar, ele refletiu seriamente sobre a minha resposta, deu uma parada, e considerou o que eu estava querendo dizer com isso. Ninguém pode desistir das imagens. As imagens devem e vão continuar. Se Ravelstein, o ateu-materialista, tinha me dito implicitamente que mais cedo ou mais tarde me tornaria a ver, ele estava querendo dizer que não aceitava que o túmulo fosse o fim. Ninguém pode aceitar e ninguém aceita isso. Nós só bancamos os durões”.

Tony é um desses durões que se descobrem tendo um coração de ouro. Coração que, para o espectador, pode se tornar um espelho. Se seguir refletindo seriamente sobre isso, provavelmente chegará àquela Imagem de que somos feitos. Aí entenderá por que o luto é uma escola de amor que nos ensina que o túmulo nunca será o fim.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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