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Francisco Escorsim

Francisco Escorsim

Liberdade de expressão

Alexandre de Moraes, o enxugador de gelo

O ministro Alexandre de Moraes na sessão plenária do STF em 12 de setembro. (Foto: Rosinei Coutinho/SCO/STF)

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Com a cadeirada de Alexandre de Moraes no X, uma realidade que já era observável se tornou escancarada. E mais compreensível, embora para isso se exija um pouco de contextualização histórica, o que farei em seguida de forma breve e resumida.

Os grandes jornais impressos começaram a perder sua majestade já quando o rádio foi inventado, mais ainda com a televisão. Com isso, o consumidor passou a se relacionar com os meios de comunicação de forma diferente. Enquanto rádios e tevês serviam as notícias do dia e nada mais se esperava delas, nos impressos se encontravam as notícias do ontem, já conhecidas, mas acrescentadas de contextos, análises e opiniões.

No fim das contas, todos se complementavam, retroalimentando-se com os mesmos profissionais, sendo que a propriedade dos veículos, por sua vez, manteve-se nas mãos de poucas empresas controlando conglomerados de emissoras de televisão, rádios e jornais impressos. Entretanto, com o advento da internet – e mais ainda das redes sociais –, duas novas alterações aconteceram que, somadas, vêm sendo revolucionárias.

A primeira: a notícia agora é instantânea, ainda que os fatos estejam se desenvolvendo. Um bom exemplo foi o ocorrido com a mudança de servidor do X, que liberou por algumas horas o acesso da plataforma no país. Até se apurar e entender o que houve, a notícia corria solta. Ou seja, não há mais como “segurar” a notícia para apurá-la ou prepará-la melhor.

O interesse pela verdade e o compromisso em reportar os fatos não está acima de outros interesses, sejam quais forem, de muitos órgãos de imprensa e jornalistas

Esta evolução afeta mais as tevês e as rádios, que sofrem agora o que os jornais impressos sofreram no passado. Esses meios de comunicação tradicionais vêm absorvendo e se adaptando, abrindo espaço para o que se noticiou primeiro nas redes sociais. Assista a qualquer programa de um canal de notícias na tevê a cabo e verá que praticamente durante todo o dia fica uma faixa horizontal na parte inferior da tela com os dizeres “breaking news”. Porque, de fato, as notícias estão surgindo o tempo todo e já não são mais os jornalistas que têm o poder e até a exclusividade de comunicá-las.

A segunda evolução decorre dessa perda de poder. Embora isso pudesse naturalmente ser absorvido pelos meios de comunicação, através dela se revelou um estado tão corrupto do jornalismo que acabou por transformar essa mudança em uma revolução, gerando não só uma resistência, mas um combate frontal que vai se intensificando cada vez mais.

A internet permitiu a todos não apenas acompanhar em tempo real o que acontece no mundo, mas também criou a possibilidade de qualquer um ser repórter. Se a novidade fosse apenas essa, o jornalismo profissional não se veria tão ameaçado, pois leva larga vantagem sobre qualquer amador, por ter mais meios técnicos e profissionais para tanto, sabendo e devendo verificar os fatos, investigar para além deles, colher depoimentos, estabelecer conexões e por aí vai.

Entretanto, como não é mais o jornalismo profissional quem controla o que deve ser notícia e o que merece mais ou menos atenção, a forma da edição mudou radicalmente. Os trending topics e outras formas de “viralização” acontecem antes e independentemente do trabalho editorial da mídia tradicional. Significa dizer que hoje é facilmente observável como esse trabalho editorial tradicional era e continua sendo feito, o que ele deixa de fora, o que escolhe valorizar ou, literalmente, esconder, seja ignorando, seja distorcendo.

Com isso, revelou-se que o interesse pela verdade e o compromisso em reportar os fatos não está acima de outros interesses, sejam quais forem, de muitos órgãos de imprensa e jornalistas. A perda de credibilidade é a consequência óbvia. Muitas das “fake news” e “teorias da conspiração” só são consideradas verossímeis por essa perda de credibilidade. Quando as pessoas dão mais crédito ao que o tio Zezão enviou pelo WhatsApp do que ao noticiado pela Globo, é muito porque o meme “isso a Globo não mostra” é mais do que uma realidade mesmo, tornou-se um senso comum.

Como não parece que os profissionais terão a humildade de fazer a necessária autoanálise com o consequente mea culpa, resta tentar retomar o poder de controlar o fluxo das notícias e sua edição. Repare que não falei em “narrativas”, que se constroem a partir das notícias. Estou apontando algo que vem antes delas.

Daí o deslocamento da discussão pública para a suposta “necessidade” de regulamentação da internet e das redes sociais, o que não significa outra coisa a não ser tentar retomar o controle do que as pessoas devem ou não saber. Como isso não é fácil nem simples de se fazer, pois se trataria de um controle mundial da própria internet, não apenas de uma lei ou decisão judicial valendo somente aqui ou ali, a demora vai, por um lado, erodindo cada vez mais a credibilidade da mídia tradicional e, por outro, exigindo tentativas “criativas” de controle social.

É aí que o STF entrou em cena. Não por acaso, para que pudessem cometer as atrocidades jurídicas que vêm cometendo, os ministros precisavam se arrogar uma jurisdição virtual sobre a internet, o que começou a ser feito com o inquérito das fake news. O fundamento jurídico do inquérito se baseava no artigo 43 do Regimento Interno do STF, que por sua vez se refere a infrações penais cometidas na sede ou dependência do tribunal. Logo, como censuram perfis de redes sociais e postagens feitas até em países estrangeiros, a conclusão lógica e inescapável é a de que passaram a considerar como “sede do tribunal” a internet inteira.

Se ministros e jornalistas acreditam que a população voltará a se informar pela mídia tradicional, deveriam prestar mais atenção às consequências reais da proibição de acesso ao X

Também não é por acaso que o ministro Dias Toffoli disse à época que o STF havia se tornado o “editor da sociedade”. E é nessa condição autoritária, antidemocrática e sem-vergonha que o ministro Alexandre de Moraes decidiu proibir toda a sociedade brasileira de se informar pelo X, impedindo o acesso a esta rede social, como somente fazem países autoritários pelo mundo. O que não deixa de ser um sintoma do fracasso de ser um editor da sociedade, tornando-se, então, um seu pretenso “dono”.

Ficou tão escancarado o autoritarismo que até o governo dos Estados Unidos, de forma oficial, por meio de sua porta-voz, em resposta a uma pergunta de uma jornalista da TV Globo sobre a proibição do X, respondeu: “sempre fomos muito claros que todos devem ter acesso às redes, é uma forma de liberdade, de liberdade de expressão”. Pelo noticiado em outros órgãos de imprensa, a TV Globo não exibiu a resposta, nem a pergunta, em seus programas de notícias. CQD.

Mas, se ministros e jornalistas acreditam que, com isso, a população voltará a se informar pela mídia tradicional, deveriam prestar mais atenção às consequências reais da proibição de acesso ao X. Não tendo mais o X como o meio que centralizava a difusão das informações e notícias, houve uma pulverização de meios por outras redes, especialmente as de trocas de mensagens, como WhatsApp e Telegram. Pode ter ficado mais caótico, descentralizado, mas os memes e as notícias têm chegado da mesma forma aos celulares de todo mundo. A notícia da cadeirada de Datena em Pablo Marçal foi trending topic mesmo sem o X, por exemplo.

Como fiscalizar e controlar algo assim sem se tornar um imperador da internet? No fim das contas, ou Alexandre de Moraes se torna isso ou passará a vida enxugando gelo, entrando para a história não como o “salvador da democracia”, mas apenas como mais um de seus destruidores, um autoritariozinho que foi além de suas chinelas.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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