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Francisco Escorsim

Francisco Escorsim

Ano novo

Tem certas coisas que a gente esconde

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Imagem ilustrativa. (Foto: Marcio Antonio Campos com Midjourney)

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Caminhava pelo gramado do cemitério, lendo as lápides dos ossos que por lá estão. Deparei-me com uma ornamentada com pequenas e belas flores, outras miniplantas, uma imagem pequetita de Nossa Senhora e uma velinha de aniversário, novinha em folha, para comemorar 2 anos. Luca nasceu em 19 de dezembro de 2022. Morreu no mesmo dia.

Ano novo para mim, desde a virada de 2013 para 2014, é sempre mais fim do que recomeço. No dia 28 daquele dezembro meu pai morria. Eis por que eu estava no cemitério. Esta época de descanso, de gratidão, de espera, de festa, não consigo mais viver assim. Melhor, não apenas assim. Há sempre um senso de deslocamento, que já foi mais temperado com amargor, deixando-me macambúzio. Menos a cada ano, mas aí mirei aquela velinha de aniversário...

Estou relendo o Guia Politicamente Incorreto dos anos 80 pelo Rock, escrito pelo Lobão anos atrás. No mesmo dia, li o trecho em que conta sobre a gravação de seu disco de 1986, O Rock Errou. Elza Soares faria uma participação especial cantando em uma das músicas. A gravação se daria no dia 12 de janeiro, mas no dia 11 um filho de Elza morreu em um acidente de carro. Lobão quis adiar a gravação, ela não deixou. Eis como o autor conta o que aconteceu:

“No dia seguinte, Elza chega direto do enterro do filho, adentrando o estúdio para o assombro de todos nós. Não havia muita coisa a dizer, e sem transição, Elza me pede um favor, que eu lhe dê um tempinho, que coloquem uma fita na máquina e emenda: ‘Com aquela sua música que diz ‘A Favela é a nova senzala…’, porque eu preciso cantar em cima dela. Não precisa me ensinar a letra. Eu só quero cantar, livre. Só cantar’. O Flavinho Senna, que pilotava a mesa naquele dia, coloca a fita na máquina, e Elza se recolhe no escuro do estúdio. O clima era de uma tristeza inexprimível, até que, de repente, a música começa a tocar (sem a minha voz), e a voz de Elza rasga o estúdio. Tenho certeza que aquele momento foi a coisa mais emocionante e comovente que uma expressão musical já me causara e me causará.”

Permitir-se sentir a dor. Foi o que fizeram Elza Soares, Hermeto Paschoal e os pais que levam velinhas de aniversário no túmulo do filho nascido morto

A música que ela queria de base para cantar era Revanche, em cuja letra Lobão se pergunta, repetidas vezes: “E quem é que vai pagar por isso?”. Os rasgos da dor de Elza responderam: “eu”. Pensei no menino morto, Luca o nome dele, já falei? Enfim. Perguntei-me quando as velas de aniversário no cemitério não serão apenas expressão da perda. Porque ainda é, apenas isso e tão-somente. Mas não para sempre. Algo nascerá pra lá da morte em algum momento, algo que talvez não caiba em palavras, mas pode ser expressado em forma de música, como Hermeto Pascoal fez.

Hermeto Pascoal tem 88 anos de idade. Em 2000, perdeu sua esposa, Ilza, com quem viveu por 46 anos e teve seis filhos. Naquela época, manteve um caderno dedicado à mulher, contendo cerca de 198 partituras. 24 anos depois, escolheu 13 delas e compôs um disco intitulado Pra você, Ilza. Não há letras, salvo nos títulos das músicas que bastam para nos transportar à vida em comum do casal. Em Voltando para Casa, por exemplo, caminhamos juntos, escutando o som de um rio, sapos, grilos e o amor revelado em forma de música.

O disco é uma celebração da vida de Ilza, de Hermeto, do amor. No encarte, escreveu:

“Tudo o que eu fiz, tudo o que eu faço, tudo o que eu continuo fazendo, a Dona Ilza está presente, maravilhosamente presente. Porque ela sempre nas horas – todas as horas, a Dona Ilza, sempre esteve presente para mim, para me ajudar de todas as maneiras. Que maravilha e graças a Deus estou aqui. E ela está lá onde Deus a levou. Mas ninguém morre, o corpo morre. O nosso amor, o nosso espírito, a nossa alma continua junto. Todos continuam desabando.”

E o que desaba sobre o ouvinte que se permite deixar levar pelas canções é aquele “pra lá da morte”, que é doce, sem perder o azedo da vida de quem fica. A alegria predomina na maioria das canções e nas mais introspectivas como Inspirando Fundo e, especialmente, Sentir é muito bom, a dor que se tornou agridoce se faz presente na medida certa, comovente e cicatrizante.

Permitir-se sentir a dor. Foi o que fez Elza Soares, que surpreendeu mais ainda a todos no estúdio em seguida, parecendo ter deixado naquela música toneladas de luto: estava pronta para gravar aquela para a qual fora convidada. Chama-se A Voz da Razão, um samba meio rock, um rock meio samba, música animada em cujos primeiros versos se escuta: “Tem certas coisas / Que a gente esconde / E não sabe aonde estão, aonde estão?! / Estão pra lá da consciência / Estão além da inocência, amor”.

Permitir-se sentir a dor, como quem leva velinhas de aniversário no túmulo do filho nascido morto. É assim que a gente encontra o que escondeu. Nas lápides se costuma colocar uma estrela antes da data de nascimento e uma cruz na data de morte. Na lápide de Luca só havia uma estrela.

Que em 2025 a vida desabe sobre você, caro leitor.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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