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Francisco Escorsim

Francisco Escorsim

Resoluções

O relógio quebrado do ano novo

relógio ano novo
Imagem ilustrativa. (Foto: Dariusz Lazar/Pixabay)

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E lá vamos nós outra vez. Esta é aquela época do ano que se parece com aqueles relógios antigos na parede da sala: você sabe que está lá, sempre esteve, mas ninguém realmente presta atenção até que se é obrigado a tanto, como agora. E quase sempre também é quando se descobre que ele está parado.

É curioso como insistimos em tratar o tempo como algo maleável nos fins de ano, moldável à força das resoluções que, na prática, já começam a fraquejar antes mesmo do segundo dia. Assim é nesta época, convencidos de que tudo recomeçará. Como se, à meia-noite do dia 31 de dezembro, alguém apertasse um botão cósmico de “reiniciar” e os ponteiros do universo girassem num ritmo novo, fresquinho, saído da caixa como um presente de Natal.

Mas, como diria o Garrincha, esqueceram de combinar com o adversário – no caso, o Tempo, o de verdade, que vai em maiúscula. Aquele que não pede licença, nem desculpas, não se importa com as tarefas esquecidas de dezembro nem com as prometidas para janeiro. Aquele que nunca recomeça porque nunca para.

É curioso como insistimos em tratar o tempo como algo maleável nos fins de ano

Alguns dias depois, no máximo semanas, e voilá: a dieta revolucionária? Naufragará quando passar o último pedaço de chocotone na frente dos olhos. A promessa da academia frequente? Cairá junto com a primeira dor muscular. E o curso on-line que você jurou começar assim que o calendário mudasse? Continuará na aba “favoritos”, na mesma posição do ano passado.

O grande problema do Tempo não é ele ser irritantemente inexorável: é ser sincero. Não importa o quanto você diga “Agora vai!”, o Tempo é aquele amigo honesto que solta: “Não, não vai. Você só quer acreditar que mudou porque comprou um planner bonito”.

Aliás, o planner é um capítulo à parte. É o evangelho do Ano Novo. Você preenche janeiro com um entusiasmo que beira o religioso: “Segunda: começar a meditar”; “Terça: retomar a academia”; “Quarta: dominar a arte da paciência (principalmente no trânsito)”; e assim vai.

Mas não demora e o planner –se não ficar relegado ao canto da estante onde fica a pilha de livros que você prometeu ler no ano anterior e nos quais nem tocou – será pouco usado, lembrado mais no fim do próximo ano pelo tanto que você quis fazer e não fez. Se tanto. O mais provável é que nem o consulte mais, voltando a comprar um novo. E lá vamos nós mais uma vez…

Enquanto isso, o Tempo vai seguindo em frente, sem renovação alguma. Ele não se importa com suas resoluções, não quer saber se você vai parar de procrastinar ou começar a beber mais água. O Tempo só quer passar – e ele é ótimo nisso.

Mas há algo fascinante nessa ilusão coletiva de renovação, reconheço. Apesar de nos enganarmos com promessas improváveis, estamos nos dando o direito de acreditar, de ter fé e esperança. O relógio pode estar parado, mas ainda assim nos esforçamos para consertá-lo, trocar as pilhas, dar corda, ajustá-lo, mesmo sabendo que ele vai parar de novo mais adiante.

O Tempo não se importa com suas resoluções, não quer saber se você vai parar de procrastinar ou começar a beber mais água. O Tempo só quer passar – e ele é ótimo nisso

Talvez, no fim das contas, o truque seja este: deixar de tratar o relógio ou o calendário como um empregado seu ou o CEO que pode lhe demitir a qualquer momento, mas tomá-lo como um colega de trabalho, mesmo com ele se recusando a esperar por você.

E, se o relógio da sala parar de vez, tome como um bom lembrete de que a vida não está nos ponteiros ou nas resoluções que acumulamos. Está no Tempo que continua acontecendo enquanto você xinga no trânsito, ou pensa nas contas a pagar enquanto tenta meditar, ou tão bem escolhe o planner que não será utilizado até o fim, quiçá até a metade.

No jogo da vida o mais importante não é controlar ou conduzir o Tempo, mas aproveitá-lo – mesmo que, às vezes, isso signifique só mais uma fatia de chocotone.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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