Sim, haverá spoilers, esteja avisado antes mesmo de começar. Mas, se ainda não assistiu a O Irlandês, corra para se dar esse presente de Natal. Sim, eu sei, o filme tem duração de 3h30, mas não me recordo de ver reclamações da duração do último Vingadores, dividido em dois filmes que duram mais de cinco horas, tendo o derradeiro mais de três horas. A verdade é que, se você “entrar” no filme, nem sente o tempo passar. Gostei tanto que revi com intervalo de poucos dias e achei o filme ainda melhor. Aos que não assistirem, portanto, saibam que estão perdendo o provável melhor filme do ano. E olha que a concorrência em 2019 está forte.
Lendo o que a crítica tem dito sobre o filme, surpreende-me que algo essencial esteja sendo pouco comentado, isso quando é percebido. Refiro-me à forma da obra, que é a do sacramento da confissão. Mesmo quem não é católico tem uma noção, ao menos, do que se trata, do pecador que confessa seus pecados diante de um padre que serve de instrumento do perdão divino. No filme, essa forma só fica clara no fim, quando Frankie Sheeran, interpretado por Robert de Niro, terminou sua confissão e conversava com o padre que a recebeu, o que revelou que toda a história contada anteriormente servia a este propósito.
O que dá maior significado à primeira cena do protagonista. Quando a câmera, depois de passear pelos corredores do asilo, para diante de Sheeran, lembra que ele começou a contar sua história em pensamento e só algumas palavras ou frases depois passou a falar para a câmera? Cena singela, mas sublime para mostrar que toda confissão começa e depende de um exame de consciência que não pode ser apenas interior, mas tem de ser manifestado, expressado, falado. Como ensina o Catecismo da Igreja Católica: “Em seu coração está o arrependimento; em sua boca, a acusação”. E do que ele se acusou?
Toda confissão começa e depende de um exame de consciência que não pode ser apenas interior, mas tem de ser manifestado, expressado, falado
Sheeran estruturou toda a sua narrativa em torno do pecado que considerava mais grave, o assassinato de Jimmy Hoffa, interpretado por Al Pacino, com a história sendo contada de forma intercalada entre este momento e tudo o mais que lhe precedeu e sucedeu. De todos os males que cometeu, é o único do qual realmente sentia remorso, também porque sabia que isso foi decisivo para o afastamento de sua filha Peggy, com quem tentava retomar o relacionamento no fim da vida. Mas, se sentia essa dor na alma indispensável para a confissão, por outro lado ainda não chegou ao arrependimento perfeito.
Ao terminar sua confissão, Sheeran se preocupou em garantir que foi sincero, que disse a verdade, ao que o padre lhe respondeu que sim, porém, emendando uma pergunta óbvia: “Mas você não sente nada pelo que fez?”. Sheeran respondeu que era tudo “água passada debaixo da ponte”. Ou seja, sentia a dor na alma, mas ainda não se arrependia de coração pelo que fizera, daí porque precisou contar toda a sua história para confessar os pecados, pois com isso os atenuava pelo contexto, justificando-se pela “regra de vida” com que vivera até ali, a da máfia, à qual ainda se mantinha fiel, como se viu ao não contar nada para os agentes do FBI, e também orgulhoso, conforme vemos pelo uso do anel ganho de presente de Russel, um dos chefes mafiosos, interpretado magistralmente por Joe Pesci. Também a insistência em tentar se reconciliar com sua filha Peggy demonstrou que não havia arrependimento por ter sido e ainda ser da máfia, pois, quando questionado por outra filha sobre isso, respondeu falseando a verdade, alegando que fez o que fez para protegê-las.
Embora Sheeran não estivesse perfeitamente contrito, atendia à condição suficiente para uma confissão válida, que é a atrição, uma contrição imperfeita decorrente do temor que nasce do peso do pecado cometido. Em outras palavras, a atrição é o medo de ir para o inferno; fica explícito que Sheeran a sentia por não querer ser enterrado nem cremado ao morrer, mas mantido numa cripta porque assim, segundo acreditava, a morte, apesar da morte, não seria algo definitivo, mantendo a esperança – que, como nos ensinou Dante, todos que vão para o inferno têm de deixar para trás ao lá entrar.
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Essa passagem do inferno ao paraíso (purgatório, no caso) ou, em outras palavras, do pecado à reconciliação com Deus está magistralmente retratada no filme pelo uso simbólico da porta. Quando pecamos mortalmente, quando entramos no inferno, fechamos a porta para o paraíso. O que é o inferno, então, a não ser o mundo do “não tem mais jeito”, da repetição torturante de pecado e castigo? Pois é exatamente esta a “regra de vida” da máfia. Quantas vezes os personagens falaram “é assim que as coisas são” ou algo semelhante para dizer que não tinha saída, não havia como mudar, não tinha conserto? Várias vezes.
Não à toa, na cena em que faz seu batismo na máfia, ao buscar armado um sujeito para levá-lo ao seu primeiro chefe, vemos na cena uma parede de tijolos com várias portas azuis fechadas. Não por acaso também nas cenas seguintes ele se revelou violento, surrando o mesmo sujeito e, ao chegar em casa, fazendo Peggy testemunhar outra surra, agora dada no vendeiro que teria brigado com ela por alguma bobagem. Peggy, no fim das contas, simboliza o inconfessado por Frankie, provavelmente ainda não conscientizado. Em vários momentos ela o escuta e entrevê através de portas, aliás.
Significa dizer que a confissão de Sheeran ainda está incompleta; teria de ir além dos crimes cometidos, reconhecendo o pecado maior de ter entrado na máfia e vivido uma vida inteira errada. Só então sentirá o que o padre esperava que ele sentisse, a indispensável tristeza de todo verdadeiro arrependimento, que é uma “tristeza de sermos o que somos”, segundo a escritora Marie von Ebner-Eschembach, e que “transborda do reconhecimento da verdade”, como disse T. S. Eliot. Embora Sheeran tenha confessado os fatos e atos de sua vida, ainda não reconheceu a verdade do seu significado, daí porque ele começou a abrir a porta que leva para fora do inferno, mas ainda não a atravessou, o que ficou evidenciado pelo símbolo da porta entreaberta que pediu para o padre deixar antes de ir embora, na cena final do filme.
No fim das contas, é Deus quem acusa nossos pecados, como disse Santo Agostinho
Sozinho, Sheeran não conseguirá atravessá-la de fato. Ninguém consegue, na verdade. Mas sozinho ele não estava. No asilo, não há cena em que estivesse só que não se fizesse acompanhar de um padre ou de uma ou mais imagens de Nossa Senhora, a “advogada nossa”. A partir daqui, passa a ser uma prova de fé exigida não apenas dele, mas do espectador também. Já não é mais a hora de contar a história, de repetir ao padre o que já se acusou, mas de se voltar a Deus e deixá-Lo completar a confissão, que é a parte do perdão. Como ensinou São João Maria Vianney, “é preciso dedicar mais tempo a pedir a Deus a contrição do que a examinar os pecados”. Pois o que são estes em comparação com a misericórdia divina? O mesmo santo respondeu: “um grão de areia diante de uma montanha”. Ou seja, no fim das contas, é Deus quem acusa nossos pecados, como disse Santo Agostinho: “se te associas a Deus, destróis o que fizeste para que Deus salve o que Ele fez”.
É ao reassistir ao filme que percebemos melhor Sua presença nos silêncios constantes da obra, seja com sentido julgador, como no mutismo de Peggy; seja no distanciamento dos filhos pródigos, como nos subentendidos das falas dos mafiosos; seja no tempo do Advento que é o presente da confissão de Sheeran, o que só descobrimos na cena final, quando o padre lhe avisou que voltaria a vê-lo depois do Natal. “É Natal?”, perguntou, ao que o padre respondeu: “Quase”. O tempo do Advento é o tempo da voz que grita no deserto do coração de todo pecador, clamando para que se arrependa e peça perdão, o que quase se pode “ouvir” no silêncio da última expressão facial de Sheeran no filme, feita de abandono e angústia. O Irlandês é um desses gritos no deserto. Quem tem ouvidos, ouça. E, depois, confesse.