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Não tenho preconceito contra clichês, tenho contra quem os usa para se livrar do esforço de tentar dizer as coisas tal como as vê ou vive. Os clichês nasceram desse esforço, aliás. E um esforço muito bem sucedido, afinal representaram ou significaram tão bem a realidade que, mesmo desconectados da sua origem, seguem vivos servindo de alimento aos zumbis da linguagem.

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No mundo do futebol os clichês abundam. Um, em especial, está na moda: “saber sofrer”. Se entendi direito, a origem está na forma como se joga o futebol atualmente. Já assistiu a criança jogando bola? Então sabe bem que onde está a bola estão todas em volta, apinhadas, chutando o que estiver na frente. Se você organizá-las minimamente, deixará de ter um amontoado de crianças para ter dois times compactos. Essa compactação das linhas de defesa, meio e ataque é uma obsessão no futebol profissional atual, o que faz o jogo ser jogado praticamente em um quarto do campo e sempre com um time pressionando o outro. Como nenhum aguenta pressionar o tempo todo, há momentos da partida em que é preciso suportar a pressão adversária. É daí que nasceu o “saber sofrer”.

Já virou clichê, infelizmente, mas ainda não foi abusado o suficiente para se desconectar da realidade que expressa. Ou seja, às vezes até que tem sido bem utilizado pela imprensa especializada ou mesmo jogadores e técnicos em suas entrevistas, como Neymar depois da vitória brasileira sobre o México. Os primeiros 20, 25 minutos da equipe mexicana foram de uma intensidade impressionante, pressionando a seleção brasileira o tempo todo, sem descanso. Apostaram tudo nesse início para tentar conseguir um gol e depois segurar o resultado, jogando no contra-ataque. Como não conseguiram, cansaram e aí não tiveram mais força para nada. Sobre esse início de jogo, Neymar comentou: “Tem momentos da partida que a gente tem de saber sofrer, a gente mostrou que sabe sofrer”.

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É claro que, nesse contexto, “saber sofrer” nada mais é do que resistir. Quando a língua vai se degradando, como a portuguesa no Brasil, é comum acontecer isso de termos antes comuns e corriqueiros se tornarem “antigos” e de significado distante, como aconteceu com o termo constrangimento, que na atualidade foi praticamente substituído por “vergonha alheia”. Mas e quando não se resiste e a equipe toma um gol? Saber sofrer, daí, passa também por suportar o resultado adverso, o que a seleção brasileira não soube fazer na Copa de 2014, por exemplo, ficando também sem resistência, e o que se viu foi o histórico 7×1.

A seleção atual já provou que resiste bem, mas não passou ainda pela situação de suportar um resultado adverso (escrevo antes do jogo com a Bélgica), o que traz consigo outro tipo de sofrimento pelo qual passaram Argentina e Portugal nesta Copa, ou, melhor dizendo, Messi e Cristiano Ronaldo. Quando a França virou o jogo contra a Argentina, as câmeras de tevê imediatamente focaram em Messi, que apareceu cabisbaixo, aparentando desistência. Jogando pela Argentina, Messi costuma ser assim, demora a reagir, embora o faça, como fez contra a França, ainda que tarde demais, tendo dado o passe para o último gol argentino. Se Messi tem esse defeito, Cristiano Ronaldo é o oposto, tendo a virtude da reação imediata mantida até o fim, como fez quando o Uruguai fez seus gols contra Portugal. As câmeras mostraram-no gritando com o time: “vamos, vamos!” No fim do primeiro jogo de Portugal na Copa, contra a Espanha, ele foi também exemplar do que é saber reagir quando se está perdendo. Com o apito final do juiz, instantes depois de ele ter conseguido o empate nos últimos momentos da partida, saiu falando para os companheiros algo assim: “Viram? Até o final, até o final”.

Suportar, portanto, é um duplo saber sofrer. É padecimento do revés sofrido somado à resistência à desesperança. Mas e quando o final chega, a derrota se concretiza, não restando mais nada senão padecer? Aí entra em cena outro clichê comum no mundo do futebol: o da superação. Depois de cada derrota vem um novo jogo; depois de cada Copa vem nova Copa. Nosso 7×1 de 2014 pode ser superado por uma possível conquista de 2018 ou no futuro? Não. Tal como a derrota para o Uruguai na final de 1950, o 7×1 é mais um fantasma que só será exorcizado com a conquista de uma Copa aqui no Brasil. Provavelmente isso não acontecerá no tempo da vida dos atores e espectadores daquela eliminação, o que significa dizer que há derrotas em nossas vidas que não são superáveis e, a depender da sua magnitude, temos, então, uma tragédia. Como a que vive o mexicano Gilberto Martinez.

Gilberto iria para a Rússia assistir à Copa com sua família. Entretanto, dois meses antes, um acidente trágico de carro nos Estados Unidos matou sua esposa Verônica e seus filhos, Mia e Diego, de 6 e 8 anos de idade, respectivamente. De repente, Gilberto perdeu tudo o que lhe importava, sem chance de resistência ou direito à reação. Como se fosse um “gol de ouro” da morte, sua vida se esfarelou em segundos. Como superar algo assim? Como ele mesmo disse: “A tragédia não se supera”. Como suportá-la, então? Caiu em depressão no primeiro momento, o que é mais do que compreensível. Sua terapeuta tentava convencê-lo a não desistir de ir à Rússia, que fizesse isso como uma homenagem à família, pois a esposa tinha programado tudo, haviam feito camisas especiais do México com os nomes das crianças nas costas, e além dos jogos do México, iriam assistir a um do Brasil e outro da Argentina, porque Verônica era argentina e Diego, um grande fã de Neymar.

Como os corpos demoraram a chegar ao México para serem enterrados, o funeral só aconteceu dias depois. No velório, Gilberto recebeu uma mensagem no celular vinda do goleiro da seleção mexicana, Ochoa, que tinha um amigo em comum com Gilberto: “Seu filho vai ser o anjo que me ajudará a voar”. “Foi nesse momento que eu achei que era uma mensagem do meu filho dizendo ‘papai, você tem que ir e viver isso'”, contou um emocionado Gilberto aos repórteres na Rússia, para onde acabou indo acompanhado de dois amigos. Fez uma camiseta especial com os dizeres “Vero, Diego e Mia sempre comigo”, indo aos cinco jogos combinados. Quando saiu o gol mexicano contra a Alemanha, Gilberto caiu em prantos na arquibancada, chorando por mais de dez minutos. Depois desta vitória que Ochoa lhe disse ter sido por sua família, ganhou de presente o par de luvas usado pelo goleiro e uma camiseta assinada por todos os jogadores da seleção mexicana.

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No jogo seguinte, contra a Coreia do Sul, foi autorizado a entrar no campo antes da partida, tirando fotos da camiseta do filho pendurada num dos bancos de reservas: “Meu filho, Diego, sempre sonhou jogar um Mundial. E nesse dia ele jogou. Eu levei a camisa dele, coloquei a credencial dele, e peguei a bola com a qual ia jogar a seleção do México. Nesse dia ele jogou”. Antes do último jogo do México na fase de grupos, contra a Suécia e com a viagem quase terminada, falou sobre o resultado dela aos jornalistas: “Foi muito diferente, foram emoções fortes. Uma viagem de muitas lágrimas, de muitas risadas. De bons momentos, de maus momentos. Esta viagem foi importante, me serviu para fechar uma conta pendente que eu tinha com eles. A tragédia não se supera. Mas viramos uma página. Todos os dias, peço apenas para que estejam comigo. E apenas tento viver dignamente, para que se orgulhem de mim”.

Isso, sim, é saber sofrer.