Caminhava devagar, procurando por sombras. O sol, embora mal amanhecido, parecia já maduro de siesta. Escutava o craquelar das folhas a cada passo, olhar perdido por entre as árvores baixas e o céu sem defeitos, meditando no que acabara de ouvir: “As árvores são solucionadoras de problemas”.
Na minha primeira ida ao grande sertão, foi um alumbramento. Na segunda, uma aquietação. Voltei mais uma vez e, nesta terceira, o senhor mire e veja, um enraizar, daqueles profundos, como das árvores do cerrado, de 3 a 5 vezes maiores debaixo da terra do que por cima dela. Em todas essas vezes, é dessas árvores o que mais gostei, gosto. Mas só nesta as reverenciei.
“Os animais desenvolvem um apurado senso de fuga diante do que lhes parece perigoso, mas as árvores, plantas em geral, não tem escolha senão padecer do perigo e enfrentar o que quer que lhes aconteça.” Aquelas palavras continuavam ecoando dentro de mim, com o botânico já muito adiante delas, mostrando aos caminhantes da trilha dezenas de espécies de plantas, descrevendo formas e mais formas delas lidarem com a vida..
É impressionante conhecer o cerrado na época da seca, das grandes queimadas, e vê-lo novamente poucos meses depois completamente novo e verdejante. Foi o que testemunhei nesta terceira ida. Onde estava a morte?
Os caules enegrecidos pelo fogo, com galhos retorcidos desfolhados de tudo, parecendo uma planta transformada em estátua, capa de tragédia a injuriar os viventes, eram sinal da sofrência cíclica, mas as folhas aplaudidas pelo vento, com suas flores delicadas e frutos breves, recriavam a vida com algo muito mais belo do que kintsugi.
Kintsugi é uma arte japonesa de restauração. Em geral, de cerâmica, como xícaras quebradas, renovadas com fios de ouro colando os cacos. A metáfora para a vida é evidente e sugestiva. Mas não se compara ao que as árvores do cerrado ensinam. Aqui, é como se os próprios cacos gerassem seus fios de ouro, não deixando cicatrizes porque não há como distinguir entre elas e a pele renovada.
Era no que eu pensava, meditava, quando Pedro explicava sobre uma pequena árvore, cujo nome já não lembro, que só dava um fruto por ano, durando apenas um dia, algo assim. Abria-se no alto, chamando morcegos, seus polinizadores. Se não viessem, já era, o fruto se perdia. Um esforço imenso para uma única chance com a duração de um sopro na eternidade. Eu seria capaz de dedicar tudo a tão pouco?
E veio o pequi, com seu caroço espinhento guardando dentro de si uma castanha mais suave e saborosa do que as conhecidas por aí. A planta soube se adaptar aos bichos, criando os espinhos como defesa, protegendo a semente que preserva a espécie, mas que só a continua se essas defesas do seu próprio coração forem vencidas. Kintsugi…
Para chegar e voltar do sertão, passei por Brasília. No meio da travessia, várias cidades e vilarejos, fiquei a mirar as pessoas a passo lento no sol escaldante, sentadas em cadeiras de praia nas calçadas; homens jogando sinuca sem camisa e de boné azul do banco Nacional pelos botecos, tantos; senhorinhas carregando pesadas sacolas verdes de mercado, janelas abertas e iluminadas na noite enluarada... Em tudo via sementes ignoradas ou desprezadas por quem colheu os frutos em eleições.
O brasileiro, desconfio, é como a árvore do cerrado. Por um lado, não temos para onde fugir, senão suportar o fogo das queimadas políticas e, então, renascer. À primeira vista, nosso presente parece sempre um intervalo entre as secas de ontem e dos amanhãs, todos, sobrevivendo somente se desiludidos do futuro e desmemoriados da miséria do passado. Mas é só na aparência que nossa resiliência parece teimosia, não virtude. Porque por outro lado, somos como um buriti, do qual tudo se aproveita e ainda serve para mais, como prova de existência de vida verdadeira.
Você sabe reconhecer uma vereda no meio do sertão? Basta procurar pelos buritis se exibindo nas alturas baixas, mas impossíveis de não se ver porque tudo em volta é menor. Se tem buriti, tem curso d’água perto. Se tem água, tem salvação, formando um caminho de vida, que é sinônimo de vereda. Se tem buriti é porque fé e esperança encontraram um oásis de caridade, seu verdadeiro destino.
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