Se a tal da polarização já era insuportável, com a pandemia, então... Todos estamos surdos, como cantou o rei Roberto Carlos: “Outro dia, um cabeludo falou: ‘Não importam os motivos da guerra / A paz ainda é mais importante que eles.’ Esta frase vive nos cabelos encaracolados / Das cucas maravilhosas / Mas se perdeu no labirinto / Dos pensamentos poluídos pela falta de amor / Muita gente não ouviu porque não quis ouvir / Eles estão surdos! / Tanta gente se esqueceu / Que o amor só traz o bem / Que a covardia é surda / E só ouve o que convém”.
A temeridade também só ouve o que convém. E entre temerários e histéricos somos todos genocidas ou totalitários aos olhos do time de surdos adversário ao seu. Qual a solução? Na falta de um tango argentino, sigo cantando com o rei: “Tanta gente se afastou / Do caminho que é de luz / Pouca gente se lembrou / Da mensagem que há na cruz / Meu Amigo volte logo / Venha ensinar meu povo / Que o amor é importante / Vem dizer tudo de novo”.
Como é Natal, quando o Amigo vem de novo, seria a hora da esperança. Mas, convenhamos, com todos surdos e esgotados de esperar, qual a chance de escutarmos tudo de novo? Digo sem medo de errar: nenhuma! Porém, contudo, todavia, entretanto, a Graça não depende de nós, ao contrário do que canta o Ivan Lins. Ela vem de repente, como um ladrão na noite. E se faz ouvir.
Entre temerários e histéricos, somos todos genocidas ou totalitários aos olhos do time de surdos adversário ao seu
Veja o exemplo de Maria. O anjo entrou onde ela estava e o resto você sabe bem o que aconteceu. Onde ela estava, não importava onde fosse. Se em casa fazendo o almoço, vendo novela na tevê ou live no Instagram; se no transporte público jogando Candy Crush; se no trabalho, na hora do cafezinho, sendo xingada no Twitter; se em qualquer outro lugar fazendo qualquer outra coisa, não importa, o anjo entrou onde ela estava. E se o anjo entrasse agora, aqui, aí, onde quer que você esteja?
Eu sei, estamos tão surdos que falar disso, de anjos, de Maria, da Graça, não faz nem cosquinha no ouvido. Só a Graça mesmo pode nos fazer abrir os ouvidos novamente. Como fez com o mais famoso surdo de todos os tempos, Beethoven, que aliás faria 250 anos em 2020. A surdez lhe apareceu primeiro como um zumbido, um incômodo, até aos poucos ir silenciando tudo em volta, exilando-o e apavorando a ponto de pensar seriamente em suicídio, felizmente não consumado graças à música interior que não se calou, aos sons imaginados que continuaram vivos dentro dele. Nenhuma Musa se compara à Graça que sustenta a vida.
Escutar as composições de Beethoven é experimentar musicalmente esse distanciamento trágico causado pela surdez, havendo sempre algo de furioso, trágico e desesperado, mas também intercalado com descompressões apaziguadoras, expansivas e serenas. É a Graça em forma de música. Embora essa tensão quase nunca seja resolvida nas obras, ainda que vislumbradas, em algumas isso acontece, como no Concerto para Piano n.º 4, com o pianista por vezes parecendo “ignorar” a orquestra, tocando sozinho como se assim estivesse, até que no movimento final se reúnem numa comunhão sublime.
Beethoven foi o último dos clássicos e o maior dos românticos. Como pessoa, porém, não foi dos maiores. O que fez ao seu sobrinho e cunhada, tirando-lhe a guarda e atormentando tanto aquele de cobranças que o levou a tentar se matar com um tiro na cabeça, diz muito sobre quem foi. Não era um homem fácil, nada fácil, muitas vezes intratável, sempre altivo e extremamente exigente. Interiormente, porém, suas obras revelam um homem muito mais sensível, ainda que triste, o que é compreensível, dada a surdez.
Posso estar muito equivocado, mas creio que é em uma de suas peças mais famosas, a Sonata para Piano n.º 14, chamada postumamente de “Sonata ao Luar”, que melhor podemos conhecê-lo. Não parece, dada a melancolia do primeiro movimento, se tratar de uma música de amor para uma de suas alunas por quem constantemente se apaixonava. Depois de um breve respiro de leveza alegre da segunda parte, vem o drama turbulento, combativo, heroico até, do terceiro movimento. É Beethoven todo, da surdez que o levaria a tirar sua vida, que o afastou das pessoas, impossibilitou viver amores, passando pela alegria provisória que sua arte proporcionou consumando-se numa vida feita de luta constante consigo e o mundo.
Na sua última fase musical, depois de terminar a magistral Nona Sinfonia, dedicou-se aos quartetos de corda, mais intimistas. A forma daquela tensão não resolvida permanece em todos, mas é interrompida de forma diferente em um. Cerca de dois anos antes de falecer, Beethoven ficou muito doente, achando que era o seu fim. Mas se recuperou, milagrosamente, segundo acreditou. Em agradecimento, “enxertou” no seu Quarteto de Cordas n.º 15 em Lá Menor, Op. 132, um terceiro movimento que destoa dos demais, ganhando título à parte que basta como explicação: “Canção sagrada de agradecimento à divindade por alguém que se recuperou”. Quem tiver ouvidos para ouvir, ouça:
Deus seja louvado por Beethoven tê-Lo agradecido assim, guardando a Graça que pode chegar até nós quando menos esperamos, onde quer que estejamos. E, quando chega, é sempre assim, plena, transbordante, curativa, como se dissesse: “Alegra-te, cheia de Graça, o Senhor está contigo!” E com a Graça me despeço do tempo do Advento, desejando a todos que estamos surdos um curativo, sonoro, retumbante, abençoado e Feliz Natal.
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