Acho que nunca prestei atenção em Beyoncé. Refiro-me a parar e escutar direito suas músicas, não de ouvir sem querer por não ter como escapar da onipresente poluição sonora das cidades. Mas, quando soube que seu disco recém-lançado é o segundo de uma trilogia que está a compor, interessei-me. Vai que não é só um punhado de canções para servir de trilha sonora a videozinho de rede social?
Decidi conhecer. O primeiro da trilogia, de 2022, é intitulado Renaissance, que achei sugestivo. Mas, escutando-o, não encontrei nada digno de “renascença”; pareceu-me mais do mesmo do que ela parece sempre ter feito, ou seja, músicas do gênero que nos anos 1980 chamaríamos de “eletrônica” e hoje tem tantas espécies diferentes, como dance, techno, house etc., que não sei dizer a qual delas o disco pertenceria.
É só o que me parece dar unidade à obra, aliás, pois a única outra coisa recorrente é o que me soou mais como narcisismo, em letras como a de I’m That Girl (“Desde o início da manhã, eu brilho”), COZY (“Eu me amo, caramba”), Alien Superstar (“Sou a uma de uma, sou a primeira, sou a única / Nem tente perder seu tempo competindo comigo”), Church Girl (“Eu vou amar em mim / Ninguém pode me julgar além de mim / Eu nasci livre” e MOVE (“Quando a rainha passar / [o caminho se abre] como o Mar Vermelho”).
No segundo disco da trilogia aquela autolambeção do próprio ego praticamente desaparece, com Beyoncé se colocando de forma mais humilde, simples, diria que até mesmo contida
Fui para o segundo disco, o recém-lançado Cowboy Carter, sem expectativa; com preguiça, confesso, porque acho a vaidade entediante. Mas, enfim, fui atrás do segundo ato da trilogia, até para ver se com isso se revelaria algo mais interessante no primeiro álbum. A capa me chamou a atenção. A do primeiro, com uma Beyoncé seminua montada sobre um cavalo prateado evocando a figura de Lady Godiva, não parecia dizer ou anunciar nada. Mas, como na capa do segundo ela volta a estar sobre um cavalo, desta vez branco, vestida com as cores da bandeira americana e em estilo cowgirl, aí, sim, surge um possível significado comum, introduzindo a ideia de partes de um todo.
Fui pesquisar sobre as capas. Pouco descobri, mas me surpreendi com a capa do vinil do primeiro disco, diferente da “oficial”, com Beyoncé se mantendo sobre o cavalo prateado, mas agora posando à frente da obra-prima de Luca Giordano, de 1690, retratando a conversão de São Paulo. A pintura é do período da Renascença, o que talvez tenha alguma relação com o título do disco, e seu tema pode ser indício do que viria ou virá no segundo e terceiro atos de Beyoncé. Será que ela “cairia do cavalo” da vaidade enjoativa do primeiro disco, renascendo?
Não sei, mas no segundo disco aquela autolambeção do próprio ego praticamente desaparece, com Beyoncé se colocando de forma mais humilde, simples, diria que até mesmo contida. Já na primeira música, American Requiem, já temos algo que conversa bem mais com o título do primeiro disco, pois um réquiem é uma música litúrgica da Igreja Católica para o ofício dos mortos. Em seus primeiros versos, canta que isso não seria um fim: “Nada realmente termina / Para as coisas permanecerem as mesmas, precisam mudar de novo”. Ou seja, renascer significaria uma transformação sem perder a identidade.
E é o que o disco entrega à primeira vista. As “velhas” formas do primeiro disco reaparecem aqui de forma contida e sem dar o tom da obra. Não foram abandonadas, antes se incorporaram com outros gêneros que Beyoncé também trabalha, sendo o country do título apenas um deles, mas que tampouco dá a forma final, que, tudo escutado, não tem exatamente um estilo ou gênero específico. Como ela mesma disse, este não é um disco de country, mas um disco de Beyoncé. Mas o que significa isso, ser “um disco de Beyoncé”? E qual Beyoncé, a do primeiro ato ou deste segundo, que aparece diferente?
A segunda música é uma regravação de Blackbird, dos Beatles, cuja letra ganha duplo significado, pois as canções seguintes são autobiográficas, com ela contando sua história de vida, o que faz com que Blackbird se refira tanto ao seu nascimento como cantora na adolescência, como seu renascimento agora: “Você estava apenas esperando este momento para se levantar”. 16 Carriages, Protector e My Rose formam, então, a parte Carter (é o sobrenome de Beyoncé) do disco, que se conecta com a parte Cowboy porque Beyoncé nasceu no berço do country, o Texas, o que significa que o gênero não lhe é estranho; pelo contrário, faz parte de suas raízes, de sua identidade.
Faz-se, então, um intervalo, com um interlúdio parecendo alguém mudando de estação de rádio até entrar o locutor, Willie Nelson, pedindo para o ouvinte relaxar e “ir para o lugar onde sua mente gosta de devanear” enquanto escuta a próxima faixa, que é o grande hit do álbum até aqui: Texas Hold’em, a mais próxima do gênero country em todo o disco, que retorna em Dolly P, com outro ícone country falando, Dolly Parton, anunciando a próxima música, que é uma cover sua, Jolene, com algumas alterações na letra.
Cowboy Carter não é um disco pop descartável. E isso já é grande coisa hoje em dia
Mas nesta segunda parte o country é apenas uma das referências, e nem a maior. Tem até um trecho da ópera Caro Mio Ben, em Daughter. Em Spaghetti, referência aos western spaghettis do cinema, inicia-se falando que “gêneros são pequenos conceitos engraçados” que, “em teoria, possuem definições simples fáceis de entender, mas que, na prática, alguém pode se sentir confinado neles”. Não Beyoncé, não mais, pelo menos, que passeia por vários, ora misturando-os numa mesma canção, ora mantendo-se em apenas um deles. Em The Linda Martell Show, embora seja a 19.ª faixa do disco, é como se fosse a introdutória: “Senhoras e senhores / Esta música em particular se estende por uma variedade de gêneros / E é isto que a torna uma experiência auditiva única / Sim, de fato / Chama-se Ya Ya”.
E vem Ya Ya, então, com o primeiro verso dizendo: “Queremos lhe dar as boas-vindas à Cowboy Carter: Ato II, de Beyoncé”. Nesta música, assim como em várias outras, Beyoncé faz alusão a músicas de artistas de estilos diversos, mas não como quem revisita o passado, tampouco como quem homenageia os antepassados, mas como quem os torna vivos e atuais novamente através dela, Beyoncé. São diversos artistas que participam do disco pessoalmente, aliás, ou que são sampleados ou aludidos de alguma maneira, não apenas antigos, mas também novos. Beyoncé se coloca como uma espécie de ponte entre o velho, reverenciado, e o novo, apresentado, como as cantoras que lhe acompanham em Blackbird.
Tudo poderia terminar em uma salada mista indigesta, mas não, acabou funcionando bem. Embora tenha duração de mais de uma hora, com 27 faixas, o disco possui uma unidade, costurado por essas intervenções como se fossem mudanças de estações de rádio. Em uma delas, no meio do disco, volta Willie Nelson, dizendo: “E se há uma coisa que você pode tirar do meu set de hoje, que seja isto: às vezes você não sabe do que gosta até que alguém em quem você confia lhe mostra algo realmente bom. E isso, senhoras e senhores, é a razão de eu estar aqui”. E aí introduz Just For Fun, que tem um de seus versos mais reveladores, assim me parece, da própria trilogia: “Eu vim aqui por um motivo / Mas não sei o propósito / Está tudo sob a superfície”.
Cowboy Carter termina com Amen, que abre com um nítido apelo gospel, e termina pedindo por uma oração, retornando aos versos de American Requiem: “Faça uma oração pelo que foi / Seremos nós que purificaremos os pecados de nossos pais / Requiém Americano / Essas ideias antigas (Sim) estão enterradas aqui (Sim) / Amém (Amém)”. Lembrei-me da pintura da queda do cavalo de São Paulo. Não acredito que a parte final da trilogia irá enveredar por esse “caminho de Damasco”, mas que é sugestivo, é. Enfim, sendo uma trilogia, o segundo ato não pode ser o que revela aquilo que está a se levantar, a renascer. Ainda estamos sob a superfície, portanto, mas é algo promissor, com este segundo ato tendo mais encantos do que parece à primeira audição. Não é um disco pop descartável. E isso já é grande coisa hoje em dia.
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