Em abril de 2020, quando a pandemia já havia isolado o planeta de si mesmo, uma música de quase 17 minutos de duração atingiu a primeira posição num dos rankings feitos pela Billboard. Este fato em si, não importando o estilo, quem canta, executa, mas o fato em si de uma música com tamanha duração conseguir um sucesso desses numa época soterrada pelo evanescente, como a sucessão infindável e descartável de stories de 15 segundos, é algo mais significativo do que parece.
O que me parece é que o sucesso teve menos a ver com a música que com a pandemia. Naquele período, músicos de todos os estilos estavam fazendo lives intermináveis, disponibilizando gratuitamente shows antigos em seus canais de YouTube e outros serviços de streaming, que era a sua forma de lidar com a espera. Naquela época, a expectativa e esperança era de que as coisas voltariam ao normal em pouco ou razoável tempo, que tudo não passava de um intervalo forçado no tempo da vida, algo como a chuva incessante numa semana de férias de verão passada numa casa alugada de praia que não tem nada além de praia.
Um intervalo sem ter muito o que fazer, e precisando se distrair da tensão e do medo, explica as maratonas de seriados e coleções de filmes, além do acompanhar de lives de músicos bêbados que só ficaram tantas horas ao vivo porque simplesmente não tinham para onde ir ou outra coisa a fazer. Nesse contexto de tempo arrastado, uma música de 17 minutos combina, tendo mais chance de chamar a atenção do que em qualquer outra época. Mas é mais significativo do que parece.
O tempo da arte é a Perenidade. Ela é sempre de um tempo específico, mas é também de todos os tempos naquilo que é universal
A canção se chama Murder Most Foul, de Bob Dylan. É a mais longa gravada pelo compositor de 79 anos. Ao lançá-la, postou na sua conta no Twitter que se tratava de um agradecimento aos fãs e seguidores por seu apoio e lealdade durante os anos, esclarecendo se tratar de uma música gravada há um tempo e “que vocês podem achar interessante”. É mais do que interessante, é sublime.
A letra parece falar sobre a morte de JFK em novembro de 1963, mas é menos sobre o político que sobre o crime e seu significado simbólico que transcende aquele momento histórico e ressoa até os dias de hoje. E impressiona como a música imediatamente, desde as primeiras notas de piano, eleva o ouvinte para um ponto de vista que não é o do passado, tampouco do presente, mas como se pairássemos sobre a história, vendo-a não da perspectiva do seu todo, mas do seu movimento que, para Dylan, é “uma lenta decadência”, como canta em um dos versos finais.
Entretanto, o movimento da música é outro, não se submetendo à decadência da história, aos lamentos, tristezas, desesperanças, horrores. Embora exista um tom elegíaco, isso não dá a forma da música, que é muito mais consoladora do que lacrimosa. Não termina com a decadência, mas com o que vem “36 horas depois do Dia do Juízo Final”. E o que vem são pedidos para um DJ tocar diversas canções imortais da cultura popular de meados do século 20 até os dias de hoje, terminando por pedir a própria Murder Most Foul. Isso dá à canção uma circularidade, devolvendo-a ao seu início, que abarca a sequência histórica do tempo e nos remete a algo mais perene.
É fácil perceber que vivemos em dois tempos. O do relógio, que sempre se esvai, e um outro que “volta”, como o tempo das estações do ano. Toda primavera é única e mais de uma ao mesmo tempo. É única naquilo que acontece no ano X, mas é mais de uma como parte da primavera como estação, com as características típicas que acontecem em todas as primaveras. Aquilo que sempre “volta” transcende o tempo do relógio, é perene. E o tempo da arte é a Perenidade. Ela é sempre de um tempo específico, mas é também de todos os tempos naquilo que é universal.
Meses depois, em junho de 2020, Dylan lançou o disco no qual Murder Most Foul está, encerrando-o. Mas é como se ela fosse a primeira faixa, não apenas pelo lançamento precoce, mas porque I Contain Multitudes, que abre o disco, é quase uma extensão sua, tanto faz se vindo antes ou depois, pois, no tempo da Perenidade, todo começo é um retorno e todo fim é eterno. E assim Dylan convida o ouvinte a acompanhá-lo de perto: “Hoje, e amanhã, e ontem, também / As flores estão morrendo como todas as coisas morrem / Siga-me de perto, estou indo para Bally-na-Lee / Ficarei louco se você não me acompanhar”.
Bally-na-Lee é, ao mesmo tempo, uma cidade na Irlanda e no poema The Lass from Bally-na-Lee, de Antoin Ó Raifteirí. O cantor contém as duas coisas na música, como tantas outras no disco todo, das flores mortas como JFK às tantas ainda por morrer, como ele próprio. O “eu poético” de Dylan contém multidões e nelas não se encerra, como Murder Most Foul não tem fim, terminando com um retorno sobre si que é “apenas” uma música, mas também todas as demais do disco, de sua carreira e de tantos outros artistas citados ou não em Rough And Rowdy Days, todos que, mais que fazerem parte da história, consolam da própria história, elevando-nos para o que não é história, mas a contém, algo Perene e caminho para a Eternidade.
Ao fim de I Contain Multitudes, Dylan canta: “Manterei o caminho aberto, o caminho aberto em minha mente / Cuidarei para que nenhum amor seja deixado para trás”. E as demais canções são esse caminho trilhado que revela esse amor sendo recolhido do nosso vale temporal feito de lágrimas e perenizado na consolação da Arte, a segunda forma de nos religar ao Eterno. O ouvinte que realmente acompanhar Dylan nesse caminho sentará com ele em seu terraço, perdendo-se entre as estrelas, escutando os sons de guitarras tristes, pensando em tudo e em tudo até o fim, voando então por sobre a história nas suas asas para receber o que explicita em I’ve Made Up My Mind To Give Myself To You: “Se eu tivesse as asas de uma pomba branca como a neve / Eu pregaria o evangelho, o evangelho do amor / Um amor tão real, um amor tão verdadeiro / Eu decidi me entregar a você”. Porque se entregou, ganhou asas.
Voltemos ao começo. Ao terraço de 2020, que é o mesmo de 2021, em que estamos isolados pelo enfrentamento governamental da pandemia. Isolados, mas não solitários. Submersos na multidão virtual conectada e distraindo-se em maratonas de séries e filmes e lives de músicos e o sensacionalismo jornalístico enquanto aguardamos chegar o pedido feito pelos ifoods da vida. E de repente aparece o convite para escutarmos uma música de 17 minutos. E, se aceitamos o convite, se realmente a escutarmos com toda atenção, a solidão enfim virá, a solidão de escutar a vida em meio ao tumulto da morte recorrente. E, se nos deixarmos conduzir por este caminho aberto por Dylan através da perene consolação da arte que é uma das primeiras formas de o Amor se manifestar para nós em nós, chegaremos a nosso destino, que está em Key West (Philiospher Pirate), que encerra o primeiro disco, já que Murder Most Fouls é tão grande que exigiu um segundo disco só para si.
O ouvinte que acompanhar Dylan nesse caminho sentará com ele em seu terraço, perdendo-se entre as estrelas, escutando os sons de guitarras tristes, pensando em tudo e em tudo até o fim
Em Key West Dylan fala da famosa ilha na Flórida, ao mesmo tempo em que a transforma também na ilha musical simbolizando nosso destino final se permanecermos nesse caminho que ele tenta manter aberto com sua arte: “Key West é o lugar para se estar / Se você procura por imortalidade / Key West é o paraíso divino / Key West é boa e justa / Se você perder a cabeça, lá a encontrará / Key West fica na linha do horizonte”.
Mas ainda não chegamos lá, seguimos no terraço e volta e meia voltaremos a perder a cabeça, olhando a vida apenas como sendo algo que segue morrendo ou sendo assassinada da forma mais vil e suja. E é por isso que o álbum não termina com Key West, mas Murder Most Foul, capaz de sempre nos devolver à solidão de escutar a vida que nunca morre, por isso consola. O que Bob Dylan fez aqui é sublime, um adjetivo que contém uma multidão de significados, como incomparável, deslumbrante, perfeito, e vai além de todos os sinônimos parciais, não deixando nenhum amor para trás.
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