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George Theiss e Bruce Springsteen eram os últimos sobreviventes da banda The Castiles, que durou de 1965 a 1968. Com o fim, George foi ganhar a vida como carpinteiro, embora nunca deixasse de tocar aqui e acolá, enquanto Bruce seguiu carreira como músico, tornando-se mais do que bem sucedido: é uma lenda do rock que dispensa apresentações. Eram os últimos, porque desde 13 de julho de 2018, quando George faleceu, vítima de um câncer, Bruce se tornou o único vivo.
Bruce, hoje com 71, visitou o amigo nos seus últimos dias e, quando foi avisado da morte, pegou uma caneta e o violão e fez o que melhor sabe fazer com o que a vida lhe dá: transforma em música. A primeira a compor foi justamente refletindo sobre ser o último a restar, chamada Last Man Standing, a que se seguiram várias outras revisitando o passado, sua carreira, a relação religiosa com a música e as mortes não apenas de George, mas também de Danny Federici e Clarence Clemons, integrantes da E Street Band, banda que lhe acompanha há mais de 45 anos, decidindo gravá-las como nunca antes havia feito, reunindo todos os integrantes em seu estúdio pessoal em novembro de 2019 e gravando tudo ao vivo, registrando também em vídeo. O resultado está no álbum e documentário de mesmo título, Letter To You, lançados em outubro do ano passado.
A velhice, se por um lado é o inverno da vida, por outro lado pode ser também a maior e mais significativa afirmação da vida, uma consumação da bênção de estar vivo em uma permanente ação de graças
Embora goste muito do disco, o documentário é melhor. Das 12 canções, 10 aparecem no filme, em ordem diversa daquela apresentada no álbum, o que faz diferença quanto à forma final de ambas as obras. No disco – que abre com a delicada e reflexiva One Minute You’re Here, com memórias da infância e o impacto da morte como desaparecimento da pessoa de um minuto para outro, e termina com a esperançosa I’ll See You In My Dreams, cantando “A morte não é o fim e eu o verei em meus sonhos” –, a afirmação da vida e ode à música ficam enformadas pela saudade, enquanto no documentário isso se inverte, transformando a saudade em presença viva e eterna.
O filme inicia com Bruce falando da própria vocação, do que o fez se tornar músico: “Isso nunca me abandonou, por quê?, não sei. É solidão, fome, ego, ambição, desejo, necessidade de ser sentido, amado, reconhecido? Não sei, só sei que é dos impulsos mais fortes da minha vida, tão certo como as batidas do meu coração”. Apresenta, então, cada um dos integrantes da E Street Band e abre as gravações com a música que dá título ao disco, retomando o momento em que “peguei minha caneta e curvei minha cabeça. Tentei convocar tudo o que em meu coração fosse verdadeiro e mandar na minha carta para você”.
E do coração nos conduz à sua juventude, quando conseguiu sua primeira guitarra, entrou pros Castiles, falando de George, de sua morte, antes de tocar Last Man Standing, mas que aqui significa algo mais, algo que, vindo depois de Letter To You e a reflexão sobre vocação vivida como o bater do coração, transformou a música numa forma de oração. Como disse Bruce na sequência, sobre a simplicidade e grandeza da música pop: “A vida em 180 segundos ou menos. Se a gente acerta, tem o poder da oração”. Neste sentido, acertou demais com essas músicas. Vem, então, não por acaso, The Power Of Prayer, e até o fim é numa oração que permaneceremos, iluminando o templo sonoro das “mil guitarras”, como canta em House Of A Thousand Guitars, dentro do qual todas as demais canções são executadas, das novas às antigas que fazem parte do disco, jamais antes gravadas e que ganham seu lugar agora na discografia do compositor, provando aqui que o bater do coração permanece o mesmo e tão forte quanto no início da carreira, se não mais.
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Mas é na parte final que o filme se torna ainda maior e melhor. É quando Bruce confirma ser também um bom escritor. Há alguns anos vem refletindo sobre sua história, sobre envelhecer, sobre a morte, sobre o sentido da vida, sobre Deus. Isso perpassa sua autobiografia, Born To Run, publicada em 2016, depois transformada no show Springsteen On Broadway, disponível na Netflix, passando por Western Stars, disco de 2019 que “tem a forma dessa memória de quem amou e foi amado, numa serenidade comovente de quem está vencendo o bom combate que se aproxima do fim”, como escrevi numa resenha do disco publicada neste espaço à época. Mas é em Letter To You que essa bela meditação se transforma em catarse, algo melhor captado pelo documentário que no disco.
É só então, no filme, que One Minute You’re Here entra em cena, seguida de Bruce lendo um texto por ele escrito: “Para onde vamos quando morremos? Talvez para lugar nenhum. Ou talvez para todo canto. Talvez nossa alma resida no éter, na parte do céu sem estrelas, e ressoe para fora como uma pedra lançada num lago calmo cujos círculos são as vidas das pessoas que tocamos ao longo da nossa vida. Ninguém sabe onde ou até onde sua alma pode soar, pode viajar”. Isso introduz I’ll See You In My Dreams, que o filme deixa soando enquanto mostra a banda escutando o resultado final, com o produtor, Jon Landau, emocionando-se profundamente. Embora Bruce estivesse ao seu lado, não percebeu na hora e só viu no filme o quanto sua alma tocou a de alguém tão próximo.
As cenas seguintes são da banda brindando o fim das gravações, com Bruce dizendo que foi uma das experiências mais profundas da sua vida e que continuarão fazendo isso até irem para o túmulo. O que o leva a refletir não mais sobre a morte, mas sobre a velhice, que se por um lado é o inverno da vida, como as cenas filmadas fora do estúdio simbolizam, sempre feitas em quadros panorâmicos de paisagens naturais cobertas pela neve do inverno, por outro lado pode ser também, para aqueles que encaram o bom combate, a maior e mais significativa afirmação da vida, uma consumação da bênção de estar vivo em uma permanente ação de graças, que é o que Bruce Springsteen vem fazendo nos últimos anos de forma contagiante, como no filme que termina com Burnin’ Train, significando muito mais aqui do que no disco, como uma verdadeira explosão de vida, com versos como: “O Tempo é meu caçador. Eu queria que você me curasse, mas em vez disso você me incendiou”.
Antes dela, porém, Bruce lê outro escrito seu, sobre a velhice. E se até aqui você não se convenceu do quanto vale a pena assistir ao filme, disponível na AppleTV+, faça ao menos uma experiência parecida. Dê play no vídeo abaixo, contendo o áudio de Burnin’ Train, e leia o que Bruce escreveu sobre a velhice e a bênção de ter nascido, de estar vivo e a Graça que é poder continuar simplesmente respirando. Depois disso, só restará uma palavra a dizer.
“Envelhecer traz perspectiva, aquela clareza que se tem à meia-noite, no fim da estrada, olhando para as luzes de um trem que chega. E muito rapidamente a gente entende o pouco tempo que resta. Só algumas noites estreladas a mais, ver a neve cair algumas vezes mais, frescas tardes de outono, dias de chuva no meio do verão. O importante é como nos comportamos e fazemos nosso trabalho. Como tratamos os amigos, a família, a pessoa que amamos. Nos dias bons, uma bênção nos toca. Ela nos abraça, e somos livres, e uma parte profundamente presente deste mundo. Esta é nossa recompensa: estarmos aqui. É isso que nos faz levantar na manhã seguinte, uma nova chance de receber essa bênção. Enquanto você passa manteiga na torrada, se veste ou dirige, do trabalho para casa, você se depara com esses momentos em que sente a mão de Deus gentilmente pousada nos seus ombros. E entende a sorte que tem. A sorte de estar vivo, a sorte de estar respirando neste mundo de beleza, horror e esperança. Porque é isso que temos: uma chance. Um mundo onde tem sorte quem ama, tem sorte quem é amado. Então você continua até isso lhe impregnar, até o suor, sangue e lágrimas doídas fazerem sentido. Continue até que a luz das estrelas distantes se desvaneça e se curve aos seus pés. Vá, e que Deus te abençoe.”
Amém.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos