Até que enfim um tema e lema de Campanha da Fraternidade da CNBB com alguma relação com a realidade dos fiéis católicos. Depois da constrangedora campanha do ano passado sobre os “biomas”, o tema deste ano é “superação da violência”. O lema, por sua vez, é tirado de Mateus 23,8, em que se diz que somos todos irmãos, desde que em Cristo. Infelizmente, nos materiais de divulgação se focou apenas em “Vós sois todos irmãos”, o que me parece retirar quase toda a força do versículo; afinal, se não for em Cristo, não sois todos irmãos, não.
Decidi fazer o download do material de apoio para poder participar da campanha ativamente. No site da Arquidiocese de Curitiba há uma página específica em que se disponibiliza um PDF chamado “Subsídio para a Campanha da Fraternidade (CF) 2018 – Arquidiocese de Curitiba” e outro texto “para refletir”. Baixei ambos, começando a ler pelo Subsídio, que inicia com uma poesia contendo versos como “O mundo capitalista exclui e é violento” e “As bancadas da bala e do boi matam com o fuzil”. Não entendi, sério. Na introdução se disse que o objetivo geral da campanha é “Construir a fraternidade, promovendo a cultura da paz, da reconciliação e da justiça, à luz da Palavra de Deus, como caminho de superação da violência”. Perfeito; então, por que se começou com uma poesia culpando capitalistas e as “bancadas da bala e do boi”? Com eles não é para se reconciliar nem promover a cultura da paz?
A seguir, o texto traz dados do Ipardes, coletados entre 2010 e 2015, informando o número de acidentes de trânsito e homicídio na Grande Curitiba, especificando dados sobre a violência contra a mulher. Em seguida vem uma reflexão sobre a violência conforme interpretações das Sagradas Escrituras, finalizando com o Decálogo de Assis para a Paz, promovido por São João Paulo II, como ocasião para cada católico se (re)comprometer, dentre outras coisas, a promover a cultura do diálogo “com sinceridade e paciência, não considerando o que nos divide como um muro insuperável, mas, ao contrário, reconhecendo que o confronto com a diversidade do próximo pode tornar-se uma ocasião de maior compreensão recíproca”. Fiquei pensando em como deveríamos dialogar com os capitalistas e a bancada da bala e do boi. Será que, se chegarmos perguntando “gosta de poesia?”, seria uma boa?
Na sequência dessas reflexões vem a parte da ação. O que fazer, concretamente? Talvez aí eu encontrasse respostas de como dialogar com a bancada da bala e capitalistas. Mas aí leio isto: “Ao se deparar com os excluídos que sobreviviam às margens da sociedade e com o sistema de opressão ao qual estavam submetidos, Jesus de Nazaré, com ternura e compaixão, anunciava, principalmente aos mais empobrecidos, o Reino de Deus. Ele os convidava para estar com ele e, juntos, exigir daquele sistema social de opressão justiça e igualdade de direito para todos. O anúncio por ele assumido estava vinculado a ações concretas. Nelas, Jesus propõe mudanças estruturais ao sistema de morte em que os mais pobres estavam submetidos” (grifos meus).
Como? Jesus de Nazaré veio exigir justiça e igualdade de direito para todos daquele sistema social de opressão? Em que parte dos Evangelhos Ele disse isso? Repito: em que parte dos Evangelhos Ele disse isso? Como se não bastasse, a seguir vêm as “pistas de ação concreta” que fizeram meu espanto e confusão só aumentar. Leio: “Criar novos relacionamentos, tendo como princípio a fraternidade e a necessidade de um projeto social comum, que seja causa de bem para todas as pessoas”. Que projeto? Logo depois: “Promover uma cultura que respeite as diferenças, combatendo o preconceito e a discriminação”. Menos respeitar capitalistas e representantes da bancada da bala e do boi, certo? Aí é para promover preconceito e discriminação, como se está fazendo neste Subsídio? E ainda: “Não se justifica colocar nas armas a solução para os conflitos humanos”. Nem em legítima defesa, como ensina o Catecismo da Igreja Católica?
Para tentar sair da confusão, fui à leitura do outro texto recomendado na página, outro “para refletir”, intitulado “A superação da violência passa pela superação da desigualdade”, de autoria de Jardel Lopes, um dos coordenadores da Pastoral Operária Nacional e coordenador das Pastorais Sociais da Regional Sul 2, da CNBB. No texto ele aponta três motivações para a escolha do tema da campanha: 1. os índices absurdos de violência no Brasil; 2. o aumento dos aparatos de segurança privada; e 3. o isolamento da sociedade. Tive de reler algumas vezes para acreditar no que foi escrito: o aumento dos aparatos de segurança privada é visto como uma das causas da violência, não uma tentativa de superá-la, de contê-la ao menos. Segundo o autor, “Com isso cresce a indústria bélica no Brasil. Somente em 2014 movimentou mais de 200 bilhões [4% do PIB]. Por outro lado, a bancada sustentada [eleita] pela indústria do armamento [bancada da bala] corresponde aproximadamente a 30% dos parlamentares brasileiros.” Não por acaso, no fim de seu texto, apresenta três perguntas a orientar o católico, sendo a primeira delas: “1. Na região ou estado quem são os/as parlamentares que representam a indústria do armamento?”
O que dizer desse incentivo à violência indireta contra esses parlamentares, que é aquele “tipo de violência que não é visível pela agressão direta, mas que se sustenta por meio dos processos de organização da sociedade”, segundo esse mesmo texto? Ou mapear quem são esses parlamentares não faz parte de um processo tentando reorganizar a sociedade? Enfim, esses materiais de apoio produzidos pela Arquidiocese de Curitiba para a Campanha da Fraternidade estão a defender que a superação da violência, na prática, impõe um combate à bancada da bala e à indústria do armamento. Como se armamento não fosse uma necessidade indispensável para se superar índices de violência reveladores de um estado de guerra civil.
Voltei ao Subsídio para ver se era isso mesmo, se não era má vontade minha. Mas, em outro desses trechos “para refletir”, lê-se: “Os números apontados pelo Mapa da Violência 2016 mostram que, no Brasil, cinco pessoas são mortas por arma de fogo a cada hora. A cada dia, são 123 pessoas assassinadas dessa forma. No ano de 2014, houve mais de 40 mil mortes. Essas cifras revelam que, no Brasil, ocorrem mais mortes por arma de fogo do que nas chacinas e atentados em todo o mundo”. Como mais adiante a cartilha lembra que “a CNBB foi protagonista no plebiscito sobre o desarmamento”, é impossível não concluir que esse material está propondo como forma de superação da violência a retirada de um dos poucos meios de defesa e segurança privada do cidadão, o que está em total contradição com o Catecismo (vide os itens 2263 a 2267). É preciso lembrar aqui que armas não funcionam sozinhas? É preciso lembrar que desarmamento não desarma bandidos, muito menos o crime organizado e portanto, na prática, o desarmamento apenas acarreta em deixar o cidadão ainda mais inseguro?
Além disso, essa posição contraditória com suas próprias premissas de diálogo com o diferente e respeito pelo pensamento divergente significa, na prática, uma proibição velada para que se dê apoio a organizações da sociedade civil que trabalham para a superação da violência lutando pelo direito de o cidadão portar armas para defesa pessoal, como o Movimento Viva Brasil e o Instituto Defesa, e que estariam, em tese, albergadas no item 7 dos objetivos específicos apontados neste Subsídio: “Apoiar os centros de direitos humanos, comissões de justiça e paz, conselhos paritários de direitos e organizações da sociedade civil que trabalham para a superação da violência”.
Nesta altura, é claro, já desisti de fazer o único “gesto concreto” presente no Subsídio, que seria doar dinheiro no dia nacional da coleta da solidariedade, no Domingo de Ramos. Se for para doar dinheiro para ajudar a superar a violência, será para as organizações que lutam efetivamente para isso, não para quem milita em retirar do cidadão o direito de se defender com armas neste contexto de guerra civil em que vivemos.
Para terminar, uma última coisinha para os mais curiosos, como eu. Sabe quem é João Santiago, o poeta presente no citado Subsídio, único indivíduo citado nominalmente nesse material e constando no fim como organizador da Campanha da Fraternidade na Arquidiocese de Curitiba? Pois então: trata-se de João Ferreira Santiago, militante histórico do PT, filiado ao partido desde 1995 e que, conforme consta da página 4, da seção 2, do Diário Oficial da União de 28 de março de 2007, foi nomeado pela então ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, como assessor na Assessoria Especial da Presidência da República, à época de Lula, onde parece ter permanecido quando a ministra se tornou Presidente da República.
Em janeiro de 2017, o site do partido publicou um artigo de sua autoria, no qual se identifica como “teólogo, poeta e militante, membro e assessor das CEBs e do Cebi no Paraná, filiado ao PT há mais de 30 anos, mestre em Teologia e especialista em Assessoria Bíblica e membro do Grupo ‘Base e Luta’ do PT de Curitiba.” Lá pelas tantas do artigo, ao fazer uma defesa veemente do criminoso José Dirceu, assim tratou os procuradores da República trabalhando na Lava Jato e o juiz Sergio Moro: “O Zé já está condenado a(sic) prisão perpétua, sem que nenhuma prova se tenha apresentado contra ele. Apenas as convicções da republiqueta de Curitiba e os caprichos de um playboy justiceiro e mimado, bancado pelo PSDB e pelos Estados Unidos”. E, mais adiante, apontou que “os inimigos da justiça e da liberdade estão nos partidos de direita, na mídia e no Judiciário, ilhas de privilégios e impunidades”. Creio não ser preciso dizer algo mais sobre o coordenador da Campanha da Fraternidade de 2018 da Arquidiocese de Curitiba, que começou sua poesia no tal Subsídio “cantando”:
“Somos todos e todas irmãos e irmãs
Não somos inimigos e nem adversários
Mesmo em diferentes religiões e clãs”
Poucas semanas atrás, por causa dos fatos escandalosos ocorridos em Londrina durante o 14.º Intereclesial das CEBs, o arcebispo de Curitiba, dom José Antônio Peruzzo, veio a público divulgando um vídeo para assegurar aos fiéis que a Igreja não assume posições político-partidárias. Confira, se ainda não assistiu:
Deixo uma última pergunta, então, além das já feitas: como dissociar a militância explícita do coordenador da Campanha da Fraternidade aqui em Curitiba, cuja visão de mundo ideológica se faz presente nos materiais que servem de subsídio às paróquias e é contrária ao Catecismo, ao menos nas passagens citadas por, na prática, impedirem o direito legítimo de defesa; enfim, como dissociar essa militância ideológica da partidária?