Encontre matérias e conteúdos da Gazeta do Povo
Francisco Escorsim

Francisco Escorsim

E o vento levou Pepe Le Pew, levará James Bond, mas ainda teremos Yesterday

Sean Connery em cena de "007 contra Goldfinger".
Sean Connery em cena de "007 contra Goldfinger". (Foto: Divulgação)

Ouça este conteúdo

Parece que James Bond ainda não foi cancelado. Mas é questão de tempo, motivos não faltam para os justiceiros canceladores do passado e ditadores do futuro acusarem o personagem de ser parte da doença que acreditam estar curando com sua política higienista. Tenho “maratonado”, como se diz, a sequência de filmes do espião mais famoso e me parece impossível que Bond, James Bond, consiga escapar dessa sanha totalitária dos iluminados da atualidade. Se nem o Pepe Le Pew escapou...

Lembra do Pepe Le Pew, leitor das antigas? Pois o gambazinho romântico dos desenhos animados foi cancelado recentemente. Iria aparecer no filme Space Jam: um novo legado, sequência do primeiro feito nos anos 1990, com Michael Jordan e toda a turma do Pernalonga. Agora, LeBron James é o protagonista acompanhado da mesma turma do desenho animado, menos Pepe, porque o personagem supostamente incentivaria o assédio sexual e bibibi e bobobó. Ou seja, se até um desenho animado está sendo deletado para “limpar” o mundo, o que se dirá da atuação de James Bond com suas bond girls, não é mesmo?

Por enquanto, ainda estamos na tentativa de reeducação, com as plataformas de streaming colocando avisos sobre os “perigos” dos filmes, mas e depois?

É provável que aconteça com os filmes antigos da franquia (porque nos novos certamente irão higienizar o personagem) o mesmo que fizeram com E o vento levou..., que foi tirado por um tempo da plataforma de streaming da HBO por ser supostamente racista. Só retornaram porque o mundo ainda não está maduro o suficiente para tão explícita censura e apagamento do passado, com a pressão contrária ainda surtindo efeito. Mas é questão de tempo para passarmos de fase e efetivamente removermos o passado “sujo”.

Por enquanto, ainda estamos na tentativa de reeducação, como passou a fazer a própria HBO, que voltou a disponibilizar o filme em suas plataformas, mas com um aviso do seu “perigo”, ou a Disney. Por exemplo, se você quiser assistir ao desenho original do Dumbo no canal de streaming da Disney+, verá aparecer na tela, antes do filme, sem possibilidade de pular, este aviso: “Este programa inclui representações negativas e/ou maus tratos de pessoas ou culturas. Esses estereótipos eram incorretos na época e continuam sendo incorretos hoje em dia. Em vez de remover esses conteúdos, queremos reconhecer o impacto que tiveram, aprender com a situação e despertar conversas para promover um futuro mais inclusivo juntos”.

VEJA TAMBÉM:

Minha singela contribuição a você, leitor que não aplaude barbaridades como esta e se preocupa com a educação de seus filhos. Pause em seguida o vídeo, antes de começar o filme, e lhes explique: “Este programa inclui este aviso negativo que é de mau trato com a inteligência das pessoas e a cultura em geral. Esse julgamento é incorreto para qualquer época, sendo justamente um estereótipo. Em vez de permitir o acesso direto ao conteúdo e que cada um forme sua opinião a respeito, querem impactar a forma como tem de ser recebido para que ninguém pense de forma diferente do que eles querem”.

Provavelmente seus filhos responderão: “não entendi nada, pai”. Ao que você, então, poderá ficar mais tranquilo porque, obviamente, avisos desse tipo não funcionam, seja porque são ineficazes em quem tenha um mínimo de bom senso, seja porque serão esquecidos com dois minutos de filme assistido.

Por isso que a próxima fase do higienismo politicamente correto será remover mesmo os filmes de onde puderem ser encontrados, apagá-los da história se possível e, por que não?, criar “centros de reeducação” para que os mais resistentes “aprendam” de vez. Claro, tudo muito democraticamente, em defesa da tolerância etc. e tal. Daí se completará o processo que tornará realistas o que chamamos (ainda) de distopias totalitárias, como Fahrenheit 451  e 1984. Agora, façamos um exercício de imaginação. Como seria o mundo se os totalitários canceladores conseguissem a realização de seu sonho, com inúmeras (mas muitas mesmo) obras de arte sendo de fato deletadas da história, como se nunca tivessem existido?

Pois eu acho que ocorreria algo como mostrado no filme Yesterday, que fez algum sucesso tempos atrás e creio ser ainda famosinho. É aquele filme em que dá um apagão na humanidade e coisas como os Beatles desaparecem para a imensa maioria, como se nunca tivessem existido. Só alguns poucos não foram afetados e se lembravam. O protagonista do filme, que é músico, decidiu gravar as músicas de que se lembrava, de cabeça. A certa altura, outros que também lembravam o procuraram. Ele, sentindo-se culpado por se passar por autor das canções, se surpreende com a postura deles, que não foi de condenação, julgamento, mas de agradecimento. Porque preferiam viver num mundo que tinha as músicas dos Beatles, fosse como fosse, do que em outro que jamais teriam existido.

Como seria o mundo se os totalitários canceladores conseguissem a realização de seu sonho, com inúmeras (mas muitas mesmo) obras de arte sendo de fato deletadas da história, como se nunca tivessem existido?

Uma pena que o filme tenha pouco aproveitado isso, não indo além da típica comédia romântica, terminando de forma clichê, mas o que criou já é suficiente para ser uma bela fábula anticancelamento que faz bom par a Fahrenheit 451, obra na qual livros proibidos e deletados da história eram guardados por alguns que os memorizaram e passavam para as novas gerações. O que este tem de assustador, levando-nos a lutar para que algo semelhante jamais aconteça, o outro tem de medicinal para a insensatez, com ambos alimentando a esperança.

Numa das melhores cenas para isso no filme, está o momento em que a gravadora não achou de bom tom que o título de um dos discos fosse The White Album, tal como o original dos Beatles. Por quê? Oras, seria racista, claro! Ridículo? Mas muito. E não há quem não ria da maluquice e do absurdo da cena, sem nem perceber o efeito medicinal no seu imaginário contra a cultura do cancelamento. Mas, se esta acabar vencendo no futuro (talvez não muito distante), tenho certeza, os poucos que restarem serão a semente do retorno da sensatez através da recuperação do que se tentou destruir. Quem sabe daí, quando essa loucura toda passar (porque passará), não surgirá um 007 contra Wokehead?

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Principais Manchetes

+ Na Gazeta

Receba nossas notícias NO CELULAR

WhatsappTelegram

WHATSAPP: As regras de privacidade dos grupos são definidas pelo WhatsApp. Ao entrar, seu número pode ser visto por outros integrantes do grupo.