Releio mais do que leio. Não só por dever de ofício (conduzo vários grupos de leitura, oficinas literárias, clubes do livro etc.), mas também por amor. Algo fácil de se entender quando se trata de música. Ou alguém aí concebe escutar apenas uma única vez uma música de que gostou? Pois é, com livros é a mesma coisa; deveria ser. Acontece de, na releitura, não achar mais o livro lá essas coisas, mas ainda assim vale a pena, serve para recordar a razão de ter gostado antes. Reler é uma forma também de se conhecer.
Mas raras vezes desgosto, quase sempre a releitura é muito mais proveitosa e nenhuma me é mais do que a releitura da obra-prima de Tolstoi, A Morte de Ivan Ilitch. Releio todo ano e a cada vez me impressiona mais do que antes. Não leu ainda? Está aí boa sugestão para o fim de ano, época propícia para se fazer um balanço geral da vida. Ivan Ilitch é daqueles que viveu tudo como manda o figurino social, cumprindo à risca o script burocrata-burguês da sociedade russa de fins do século 19 e que é muito parecida, mas muito mesmo, com a realidade brasileira de antes e de hoje.
Vivia a vida decente, como ele mesmo chamava, no sentido de viver adequado ao padrão geral, sem jamais imaginar que isso pudesse estar errado. Até ficar doente, gravemente doente, à beira da morte: “Talvez eu não tenha vivido como se deve – acudia-lhe de súbito à mente. – Mas como não, se eu fiz tudo como é preciso? – dizia de si para si, e no mesmo instante repelia esta única solução de todo o enigma da vida e da morte, como algo absolutamente impossível.” Ter vivido errado, quem nunca? Mas uma coisa é admitir e mudar de vida, outra é confessar no leito de morte, quando não há mais conserto. Por isso, as páginas finais de A Morte de Ivan Ilitch estão entre as coisas mais sublimes já escritas pelo ser humano.
Terminei a releitura dias atrás, em meio ao noticiário da falência das livrarias Cultura e Saraiva, cujo impacto no mercado editorial será devastador, segundo o editor Luiz Schwarcz, da Companhia das Letras, nossa maior editora, que publicou uma carta aberta sobre isso: “dezenas de lojas foram fechadas, centenas de livreiros foram despedidos, e as editoras ficaram sem 40% ou mais dos seus recebimentos”. Para um setor que já havia encolhido 40% (segundo a Cultura informou em seu pedido de recuperação judicial), ficar sem receber tudo isso é uma sentença de morte.
O mercado editorial está como Ivan Ilitch, no leito de morte, sendo obrigado a confessar que viveu errado, o que o editor admite estar disposto a fazer: “Sem querer julgar publicamente erros de terceiros, mas disposto a uma honesta autocrítica da categoria em geral”. A carta, porém, não se destina a isso, à autocrítica, o que é compreensível (mas melhor seria se a fizesse). Ela é antes um apelo aos agentes do setor (editores, livreiros e autores) para procurarem soluções que permitam ao mercado editorial sobreviver e faz uma sugestão: “O que precisamos agora, entre outras coisas, é de cartas de amor aos livros”.
Cartinha de amor nessa hora? Confesso minha desconfiança impaciente, parecendo-me mais um pedido como o de Ivan Ilitch quando ainda não tinha caído a ficha do quanto estava vivendo errado: “o que mais atormentava Ivan Ilitch era o fato de que ninguém se compadecesse dele da maneira como ele queria: havia instantes, depois de prolongados sofrimentos, em que Ivan Ilitch queria mais que tudo, por mais que se envergonhasse de confessá-lo, que alguém se apiedasse dele como de uma criança doente. Queria ser acarinhado, beijado, que chorassem sobre ele, como se costuma acarinhar e consolar crianças”.
Mas, ainda que seja ou tenha muito disso, o editor não se limitou a pensar em cartinhas de amor como se fosse um adolescente saudoso da ex-namorada. Sua intenção é criar, através dessas cartas, uma “rede de solidariedade” aos moldes das que se formaram “durante a campanha eleitoral” para incentivar a compra de livros para presentear no Natal: “Cartas, zaps, e-mails, posts nas mídias sociais e vídeos, feitos de coração aberto, nos quais a sinceridade prevaleça, buscando apoiar os parceiros do livro, com especial atenção a seus protagonistas mais frágeis, são mais que bem-vindos: são necessários”.
Não é má ideia, mas com pouca chance de sucesso. A realidade é que não é por falta de compradores que o mercado editorial está morrendo; é por falta de leitores. A crise do mercado editorial é muito mais profunda, de natureza cultural e educacional, que levará bom tempo para ser resolvida, se é que será. Até lá, o mercado editorial não terá escolha a não ser diminuir ao tamanho da realidade do seu público consumidor, que ainda é ínfimo perto do que poderia ser. Na última pesquisa “Retratos da Leitura no Brasil”, realizada pelo Ibope por encomenda do Instituto Pró-Livro, feita em 2016, pouco mais da metade da população é considerada leitora pelos critérios da pesquisa.
Acontece que o critério em si já é insuficiente para se avaliar se alguém é leitor. Por ele, é leitor quem tenha lido ao menos uma parte de um livro nos últimos três meses. Se o critério não parece insensato à primeira vista, basta aplicá-lo a outras realidades para se constatar seu absurdo. Por esse critério, por exemplo, muita gente seria considerada morador de praia, ainda que só vá para lá em feriados e olhe lá. Outro exemplo, agora pessoal. Sou católico, mas nos últimos três meses visitei uma mesquita em Curitiba para assistir a uma palestra. Com um critério desses eu seria considerado muçulmano. Enfim, mesmo com um critério frouxo desses o resultado é ridículo, com o número total de livros lidos por ano pelo brasileiro estando em torno de quatro, apenas quatro, sendo que apenas dois teriam sido lidos inteiros. A coisa fica ainda pior quando as perguntas foram feitas a professores: 50% deles não tinham lido absolutamente nada e outros 22%, apenas a Bíblia.
É uma tragédia, é claro, mas durante décadas os governos mascararam a realidade do mercado editorial, sendo os maiores compradores de livros e, com isso, criando um público fictício. Com o governo quebrado e a crise instalada, o mercado editorial vem sendo confrontado pela realidade que impõe reconhecer que se viveu errado até agora, como Ivan Ilitch tinha vivido. Talvez as livrarias Cultura e Saraiva se recuperem, mas antes disso acontecer certamente muitas editoras irão desaparecer, inclusive das grandes; é inevitável. E, já que muitos nesse meio viveram como Ivan Ilitch, não poderia haver prova de amor maior aos livros do que desejar que esses Ivans Ilitchs do mercado editorial morram também como o personagem. Leitores entenderão.
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