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Velório do presidente Tancredo Neves, no Salão Nobre do Palácio do Planalto, em 1985.
Velório do presidente Tancredo Neves, no Salão Nobre do Palácio do Planalto, em 1985.| Foto: Arquivo Agência Brasil

Ando a ler as memórias de Jorge Amado, publicadas em Navegação de Cabotagem, contadas sem preocupação de ordem cronológica, nem precisão de datas. Gosto assim, das memórias irem e virem, bailando ao som de relações aparentemente aleatórias a desenhar um sentido de vida não conquistado, mas descoberto.

Tenho algumas assim, daquelas que se misturam e você não sabe ao certo qual é qual, nem quando é quando. Tenho duas de 1985, uma em que estava na casa de praia de meu avô materno a assistir com ele na TV o que não sei se era a vitória de Tancredo Neves na eleição indireta para presidente da República ou seu enterro, ocorrido meses depois, que é a segunda.

Não devia, mas fui conferir as datas. Como a eleição foi em janeiro e Tancredo morreu em abril daquele ano, a memória é da vitória, também porque lembro da alegria de meu avô sorridente na sala. Alegria que se tornou minha, com 9 anos de idade, que embora mal entendesse o que se passava, já caía de amor pelo que nascia e que diziam ser a democracia.

O amor à democracia sempre morre meses depois pela frustração de tantas promessas esquecidas, tantos conchavos a garantir o poder à custa de todos nós

De lá para cá fui gradativamente perdendo o interesse por eleições, campanhas, debates. Porque a realidade é que o amor à democracia sempre morre meses depois pela frustração de tantas promessas esquecidas, tantos conchavos a garantir o poder à custa de todos nós. Todos os eleitos fizeram assim, absolutamente todos. Hoje, posso dizer que me interesso tanto pelo último debate antes do segundo turno, por exemplo, quanto pela final do campeonato romeno de dominó, categoria +80.

Talvez por isso tenha associado na mesma memória a vitória e a morte de Tancredo Neves, formando uma espécie de “arquétipo” da democracia no meu imaginário, que seria um teimoso renascer em meio à morte súbita e repetida. A democracia é o que resta depois da ilusão da vitória eleitoral assassinada pela realidade do exercício do poder. Mas o que resta?

Sei que tem um livro por aí falando sobre como as democracias morrem, mas existe algum sobre como ela renasce? Ando cansado de fingir que ela vive. Se ainda houvesse algum comentarista político por aí capaz de avaliar o rigor mortis do cadáver da nossa democracia mumificado pelo tal inquérito do fim do mundo aberto no STF, fazendo com que a putrefação seja lenta, talvez servisse para algo. Mas não há, todos seguem atuando no que não é mais do que uma farsa teatral que escapou, por enquanto, à censura judicial.

Volto às memórias de Jorge Amado, que testemunhou a democracia morrer e renascer várias vezes. Foi notório comunista, da linha stalinista, tendo se desiludido em 1956 quando foram revelados os crimes de Stálin, a quem chamava de pai (conforme deixa claro no livro). Desfiliou-se do PCB e seguiu a vida. Começou a escrever suas memórias 30 anos depois, terminando em 1992, aos 80 anos, “quando o mundo nascido de duas guerras mundiais e da revolução socialista se esboroa e nas ruas se discute e se planeja uma nova carta geográfica e política”.

No prefácio, continuou: “O que parecia definitivo se desintegra, deixa simplesmente de existir. A História acontece diante de nós, nos vídeos de televisão, transformações espantosas, mudanças inimagináveis, num ritmo tão rápido, tão absurdamente rápido que um dia vale anos, a semana tem a medida de um século. Só tenho pena de não me restar o tempo necessário para ver em que tudo isso vai dar. Bem que gostaria”.

Sei que tem um livro por aí falando sobre como as democracias morrem, mas existe algum sobre como ela renasce? Ando cansado de fingir que ela vive

Admiro esse desejo, fruto da esperança, sem o que nenhum renascer é possível. Vi esse desejo, essa esperança no olhar de meu avô em 85, no meu mesmo em outras eleições. Mas já faz tempo que votar no menos pior é mais uma luta para não perder a esperança do que outra coisa. A eleição da vez não é diferente, não para mim, pelo menos. Poderia me vangloriar alegando em meu favor que defendo a política do ceticismo, segundo Oakeshott, em contraste com a política da fé de tantos ao meu redor. Talvez até seja, mas e daí? Como a democracia renasce?

Voltei à leitura de Amado e um trecho em particular me chamou a atenção, ainda dentro do mesmo contexto: “Teorias, ideologias – teorias ditas científicas, ideologias consideradas de pureza incontestável – que seduziram intelectuais, mobilizaram multidões, massas populares, comandaram lutas, revoltas, guerras em nome da felicidade do homem, dividiram o mundo em dois, um bom, um ruim, se revelam falsas, pérfidas, limitadoras: conduziram à opressão e não à liberdade e à fartura. ‘Proletários de todos os países, perdoai-nos!’, lia-se na faixa conduzida pelos moscovitas na Praça Vermelha durante o desfile de um 7 de novembro recente”.

Perdoai-nos... Tão óbvio. É só assim que tudo pode renascer.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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