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Francisco Escorsim

Francisco Escorsim

Um carioca curitibano

Naquela mesa com o Conselheiro Aires

Imagem ilustrativa. (Foto: Marcio Antonio Campos com Midjourney)

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Ainda estou naquela mesa, mirando a extensão da Rua do Ouvidor tricotada por fios de luz. Uma mansidão no ar, típica de cidade que acorda tarde e descansa melhor pela manhã. Era quase hora do almoço. Nos bares, todos, televisores enormes ligados na mesma coisa. Descobri pelos gritos eufóricos dos demais convivas e garçons. “Ouro?” “Ouro!” Da judoca Bia Souza.

Espantei-me com a comemoração pública, com o interesse geral. Em Curitiba, jamais. Será? Talvez nas ruas com bares. É possível, é possível... Prefiro acreditar que sim. Mas tive de me esforçar para isso, pois a lembrança daquela Copa América de 1989 veio com força de recorde olímpico nunca quebrado.

Ao ganharmos, meu pai decidiu nos levar passear de carro pela cidade para ver a comemoração do título. Um de meus irmãos segurava uma bandeira do Brasil que tremulava por fora, presa pelo vidro da janela do passageiro. Não havia comemoração alguma nas ruas. Depois de um tempo, surgiu uma moça prejudicada pela lei da gravidade – jamais a esqueci – que nos vaiou, gritando por fim: “Jacu!”

O Conselheiro Aires se parece bem mais com um curitibano no Rio de Janeiro que com um carioca nativo

Para um adolescente, daqueles típicos que não sabia quem era, só do que não gostava, aquele “jacu” foi como um ippon, ecoando até hoje. Aplaudi nossa judoca com certo temor, confesso, sentindo-me como Conselheiro Aires, querendo se envolver, mas se mantendo distante o suficiente para que ninguém me notasse.

Ainda estou naquela mesa, agora em dúvida se peço outro chope. O primeiro merecia superlativos que apenas José Dias seria capaz de criar. José Dias, num bar chamado Capitu, na Rua do Ouvidor, sentindo-me um Conselheiro Aires... Como diria aquela figurinha de WhatsApp usando a imagem de Machado de Assis: “Absolute Literature!

Aliás, sejamos honestos: Aires se parece bem mais com um curitibano no Rio de Janeiro que com um carioca nativo. E como Aires, dizem, é praticamente o alter ego de Machado, logo… Deixemos o curitibano Aires falar: “Vou ficar em casa uns quatro ou cinco dias, não para descansar, porque eu não faço nada, mas para não ver nem ouvir ninguém, a não ser o meu criado José. Este mesmo, se cumprir, manda-lo-ei à Tijuca, a ver se eu lá estou”.

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Não estou mais naquela mesa, mas navegando, personificando o Aires, em direção à Ilha Fiscal, onde tem um castelinho que parece ornar mais com o Beto Carrero World que com o fim do império no Brasil. Descubro lá que o lugar do último baile imperial não foi feito para festas, menos ainda para ser um castelo de fato, mas servir aos “Taxads” da época. No fim das contas, continuemos sendo honestos, tornou-se mesmo um Beto Carrero da Marinha, mas sem atrações.

Na volta, o fim do dia pousava, tão manso como as manhãs acordam. No Largo da Candelária, crianças brincando por toda parte, fazendo parecer que o Rio não tem problemas. Mas basta chegar na Primeiro de Março para lembrar que os tem, vários. Do sossego de passos atrás para a confusão de veículos, entendi o que uma amiga disse sobre o centro da cidade: têm prédios e vielas fazendo parecer Paris e um trânsito da Índia.

A seleção feminina de vôlei acabou de perder a semifinal. Como estaria a Rua do Ouvidor neste instante? A derrota compartilhada com chope e convivas seria bem menos amarga

Estou agora na minha mesa, que não é de bar, infelizmente, onde passo a maior parte das horas do dia. Ainda no personagem, busco o livro na estante. Machado merece destaque maior, com edições melhores. A única decente que possuo é a do Memorial, volume que faz parte das Obras Completas editadas pela Mérito, em 1961. Só tenho esse volume. Abro a esmo, e na Advertência leio: “Nos lazeres do ofício escrevia o Memorial, que, apesar das páginas mortas ou escuras, apenas daria (e talvez dê) para matar o tempo da barca de Petrópolis”.

Será que ainda existe essa barca? Anotei mentalmente, quem sabe em um próximo lazer do ofício? Enquanto escrevo, escuto na tela em segundo plano que a seleção feminina de vôlei acabou de perder a semifinal. Como estaria a Rua do Ouvidor neste instante? A derrota compartilhada com chope e convivas seria bem menos amarga.

Mas não estou só, o conselheiro me faz companhia, desvendando o que me vai no coração, fazendo jus ao outro significado do seu título diplomático: “Quando eu lia clássicos lembra-me que achei em João de Barros certa resposta de um rei africano aos navegadores portugueses que o convidaram a dar-lhes ali um pedaço de terra para um pouso de amigos. Respondeu-lhes o rei que era melhor ficarem amigos de longe; amigos ao pé seriam como aquele penedo contíguo ao mar, que batia nele com violência. A imagem era viva, e se não foi a própria ouvida ao rei da África, era contudo verdadeira”.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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