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Assim falou Zaraugusta!
Os ocos do Pacaembu
morrem de rir: se não custa
dar de graça o pátrio cu,

que se entupa de concreto
o nacional orifício,
que o fácil vire difícil
e tudo mais objeto,

que o país se torne um poste
cercado de vira-latas!

Eis um trecho da obra Os Sapos de Ontem, de Bruno Tolentino, publicada em 1995 pela editora Diadorim, composta de quatro partes. Nas duas primeiras, um ensaio crítico do concretismo vem seguido de uma compilação de artigos de jornal historiando a querela literária do poeta com Augusto de Campos, enquanto nas duas últimas vem o melhor, poemas satíricos como o trecho acima, com intenso tom de galhofa ridicularizando seus destinatários, não apenas Augusto, mas também seu irmão, Haroldo, além de primas-donas da intelectualidade (sic) pátria, como Marilena Chauí, José Arthur Gianotti, Caetano Veloso e por aí vai.

Do que venho tentando mapear das origens da “nova direita”, duas coisas me parecem muito claras e de difícil contestação: a degradação cultural brasileira, que chegou ao ponto mais baixo na época desse livro, em meados dos anos 1990, algo sem precedentes na nossa história; e o contexto de guerra cultural que fazia de qualquer um que ousasse dizer que o rei estava nu – e ainda está, aliás –, como Bruno Tolentino fez com Augusto de Campos, fosse automaticamente “excomungado” do círculo do beautiful people intelectual e tratado como inimigo em campo de batalha. A partir daí não havia mais possibilidade de diálogo, de conversa efetiva, apenas gritos de surdos em meio a um tiroteio.

O contexto de beligerância nos anos 90 só não era tão escancarado quanto hoje em dia porque a internet nem existia direito e havia poucos inimigos a batalhar contra a hegemonia esquerdista na cultura, sendo que os que havia eram facilmente neutralizados pelo assassinato prévio de reputação. Não precisava muito para isso, aliás. Lembro bem de ser um adolescente e ter horror a Paulo Francis, por exemplo, mesmo nunca tendo lido nada dele. Por quê? Nem eu sabia, apenas “sentia” que quem era “de direita” só poderia estar errado, não valia a pena nem sequer conhecer e acompanhar. Por isso nunca lia Francis, Merquior e via em Roberto Campos a própria encarnação do Mal.

Se deixo meu exemplo pessoal como demonstração do quanto a tal hegemonia gramsciana, fosse o que fosse em teoria, tinha conquistado hegemonia de fato na cultura brasileira é porque ainda hoje me impressiono ao ver como isso foi comum naquela época. Conversei com algumas dezenas de pessoas da minha geração e são raros os que não “sentiam” assim. Eu não era uma exceção, portanto. Minha tolice, minha burrice, minha idiotia era comungada. Minha geração foi formada pelo imbecil coletivo e o seguíamos fielmente.

Quanto à degradação cultural, é ainda mais fácil de demonstrá-la, pois pouco mudou. Se hoje há motivo de esperança, e há, pela reabertura cultural que andamos a viver, por outro lado uma recuperação cultural depende não de combatentes culturais – por mais valorosos que sejam e hoje, graças a Deus, os temos em bom número –, mas de indivíduos cultos e bem formados, coisa ainda muito rara, a semear e produzir alta cultura (embora não apenas, mas sem ela nada feito).

Quer saber quão (in)culto e bem (de)formado você é ou está? Pois leia Os Sapos de Ontem, de Bruno Tolentino, e faça seu diagnóstico. Meça seu “tamanho” cultural com o dele. Duvi-de-o-dó que você consiga perceber todas as referências do poeta, muito menos apreender a razão de sua aplicação. Relendo-o para fazer esta coluna fiquei até feliz de conseguir captar um pouco mais do que na última leitura, feita muitos anos atrás, mas estou incerto do quanto ainda me falta compreender, o que é sinal claro de incultura. Um dia chego lá, porém; afinal, na primeira eu não entendia quase nada do que ele estava falando. Melhorei razoavelmente de lá para cá.

Volto a dar meu exemplo porque é o que melhor conheço, e com isso consigo mostrar com mais precisão a distância cultural que havia à época entre a minha geração, em torno dos 20 anos de idade, e a geração de homens como Bruno Tolentino, Paulo Francis, Olavo de Carvalho, dentre outros, que haviam nascido antes dos anos 1950. Não se tratava de uma diferença geracional apenas, mas civilizacional. Não estou exagerando. A percepção imediata que a imensa maioria dos jovens despertados de sua incultura tinha – e tem – diante de um Bruno Tolentino ou Olavo de Carvalho é da distância imensa que estava – está – da cultura deles, ao que se costuma seguir uma sensação de não haver tempo, de ser impossível chegar a saber tanto um dia, de conhecer tanto, de ser capaz de enxergar e dizer tanto.

A sensação pode estar errada – e está –, mas não a percepção da distância que leva à conclusão inescapável de que o esforço necessário para reformar sua cultura pessoal e preencher as lacunas do que não foi deformado porque nem sequer foi conhecido é imenso e levará um bom tempo. Para se ter uma noção mais acurada dessa diferença civilizacional que é, na prática, diferença de autoconsciência, preste atenção ao título dado à terceira parte dessa obra de Tolentino: A Retirada da Lacuna, que também é um dos poemas, do qual transcrevi o trecho acima. A referência primeira – e que deveria ser óbvia, mas não é mais – é à “retirada da Laguna”, um episódio da Guerra do Paraguai imortalizado na literatura pelo Visconde de Taunay. Trata-se de uma das primeiras reações brasileiras à invasão do nosso território pelos paraguaios, no Mato Grosso, e quem conhece um pouco dessa história, especialmente pelo livro de Taunay, sabe que a manobra militar estava fadada ao fracasso desde o início. Por que Tolentino escolheu esse episódio, essa obra literária para fazer parte de sua obra?

Nas palavras do crítico Rodrigo Gurgel (outro autor cujas obras serão resenhadas por aqui em algum momento) sobre a obra de Taunay podemos encontrar um princípio de resposta: “Se não há glória n’A Retirada da Laguna, por que sua leitura seria proveitosa? Porque a desdita é o fado dos homens na Terra e, os gregos nos ensinaram, há algo de essencialmente positivo em toda tragédia: quando a vida nos coloca frente a frente com sua face mais terrível, acordamos para a nossa própria insignificância, o que não nos deve levar à resignação, mas à consciência, infelizmente muitas vezes fortuita, de que o mal não deve prevalecer sobre o bem, ainda que este pareça o costume”.

Espero não seja preciso de mais para o leitor que se reconheça inculto constatar o alcance e profundidade do que Tolentino tentou fazer. Não era “apenas” sátira, piada, pelo contrário. Tanta coisa se comunica nessa referência à retirada da Laguna que, se formos descompactá-la, sairia um livro explicando cada possível comparação entre aquele episódio e o vivido pelo poeta, e entre nossa tragédia cultural e a daquela guerra; o que significa despertar dentro de uma tragédia em andamento, sem perspectiva de nada, com a imediata sensação de impotência, insignificância e inglória; constatar a coragem do poeta diante da consciência aguda do fracasso de sua empreitada e mesmo assim não desistir. O que deixo aqui apenas indicado, portanto, espero seja suficiente para termos uma noção um pouco mais certeira não apenas disso, mas também da escolha magistral em trocar Laguna por Lacuna. Leiamos o trecho inicial do poema:

Com dó do terceiro mundo
dois irmãos inventam a roda:
pedante vira profundo,
pernóstico entra na moda.

Vai-se abrindo uma lacuna
no cérebro nacional
e a poesia vira aluna
de sapos de manual.

O primeiro sentido do que o poeta quis dizer com “lacuna”, portanto, está explicado no próprio poema, o que permite compreender sua intenção com a obra. Tolentino tentava ao menos interromper o avanço dessa lacuna, quem sabe fazê-la recuar. Mas a referência à retirada da Laguna dá a esse esforço um sentido segundo que, como vimos, já antecipa seu fracasso e o receio de que a tragédia aumentasse ainda mais, como lemos mais adiante no poema. Mas há um sentido terceiro para essa “retirada da Lacuna” que só pode ser percebido por quem compreendeu a obra toda, não apenas este poema. Para usarmos as mesmas imagens do poeta, citadas neste texto, à lacuna aberta se seguia o entupimento do local com concreto. Em outras palavras: a degradação cultural era meio para se chegar à hegemonia concretizada e tão evidente quando lemos uma obra como esta, assim como os volumes de O Imbecil Coletivo, de Olavo de Carvalho, da mesma época. A lacuna aqui, então, inverte seu sentido e se torna não um mal, mas um bem necessário. Tolentino, o que fazia, assim como Olavo de Carvalho, era justamente abrir uma lacuna nessa hegemonia da única maneira que se consegue quando se quer abrir um buraco no concreto: a marretadas.

É para isso que serve a sátira e por isso ela é a única arma efetiva de combate para contextos de guerra cultural como o brasileiro. A incultura, e portanto a inconsciência, é tamanha que somente o esculacho, a humilhação, é capaz de despertar as inteligências para e da sua própria indigência. Assim é porque toda sátira requer a presença de dois “mundos” muito claros, ou dois padrões morais, em que um é claramente grotesco e absurdo, e outro moralmente superior. Por mais que mal consigamos captar as referências desse mundo cultural superior de Tolentino, o grotesco e absurdo do que fizeram os irmãos Campos e seus asseclas é bem fácil de enxergar por causa do riso que a leitura proporciona.

A mesma coisa se diga de quem lia ou lê as obras de combate de Olavo de Carvalho, como os citados O Imbecil Coletivo e também o best-seller mais recente, O Mínimo que você precisa saber para não ser um idiota. Só o uso das palavras “imbecil” e “idiota” já dão conta do tom satírico com que o grotesco e absurdo será tratado – com toda justiça, diga-se. Diogo Mainardi é outro que também fez uso eficiente da sátira, como se vê também do título de um de seus livros, Lula é minha anta, uma coletânea de artigos escritos originalmente para a revista Veja. Igualmente encontramos o mesmo em Reinaldo Azevedo, com a criação do neologismo “petralha” que deu título a pelo menos dois de seus livros, também coletâneas de artigos publicados na imprensa.

A sátira se tornou, portanto, a arma de ataque por excelência daqueles que, tanto fazendo se forem de direita ou de esquerda, reconhecem o absurdo do rebaixamento da cultura à ideologia e a consequente hegemonia cultural esterilizante e concretada em um politicamente correto totalitário e emburrecedor. Para deixar apenas um exemplo de que não se trata de uma reação ideológica de direita a essa hegemonia de esquerda, fiquemos com outro poeta, Ferreira Gullar, que militou como comunista e foi um dos que despertaram para seu mal quando se deu conta do que, de fato, estava sendo construído na cultura e sociedade.

Mas ninguém fez uso mais preciso e eficiente da sátira do que Olavo de Carvalho. Para além de seus embates na imprensa, o filósofo agia também na internet, fazendo uso da sátira não apenas como arma de ataque, mas de “exorcismo”, em seu programa de rádio hoje extinto, o True Outspeak, e depois no seu perfil nas redes sociais, especialmente o Facebook, onde manteve o personagem criado para o programa de rádio, uma combinação barroca de Sócrates com Alborghetti. Milhares foram despertados da hipnose coletiva que a hegemonia cultural construiu pela sátira humilhante do filósofo. E continua sendo assim até hoje.

Mas é claro que há efeitos colaterais previsíveis no uso indiscriminado da sátira, talvez inevitáveis. Dada a degradação cultural, o mero despertar tomando consciência dela pode iludir o sujeito fazendo parecer que ele foi “salvo” ou que, só por isso, já seria superior ao seu meio. Não é, mas, como incultura não dói, o que o sujeito sofre é por uma falta de sentido, senão na própria vida, no meio em que vive, nas vidas em torno, em tudo que existe. E o sofrimento aumenta se e quando ele tenta expressar essa confusão à sua volta, tentando se orientar. O sujeito inculto tem por primeiro sintoma uma dificuldade monstruosa de autoexpressão. Ainda que veja o que está se passando, ele é impotente, incapaz de articular isso em linguagem para si mesmo, o que o torna presa fácil para a tentação de emprestar a expressão alheia como se fosse sua. Pior, imitar a persona alheia como se fosse a dele. E aí, de fato, algum sentido ele adquire e a incultura volta a não ser percebida, nem lembrada.

Um dos efeitos colaterais do sucesso de Olavo de Carvalho, aliás, está nisso. Não são poucos os que, despertados por ele, acreditam que só por isso estão “do lado certo” e agora tudo o que têm a fazer é “combater o bom combate”. Mas não tendo nem cultura nem personalidade própria, como o filósofo, tornam-se uma paródia dele, o que significa dizer que, aos poucos, vão se tornando justamente o que acreditavam combater: o grotesco e o absurdo da incultura esquerdista, agora em nova embalagem, de direita. Aí temos o império das “mitagens”, dos memes grosseiros, do ataque sem humor, ou seja, da denúncia pura embalada num moralismo de conveniência. A sátira no que perde a graça ganha em escrotidão. Ou seja, na prática, o que era arma de combate passa a se tornar também arma de defesa, com a consequência de manter o mesmo contexto da impossibilidade de diálogo, de conversa efetiva, apenas abundando gritos de surdos em meio a um tiroteio. Aí só restará dizer, como Bruno Tolentino disse em Os Sapos de Ontem:

Eu, que acompanhei a história,
resumi-a sem carinho,

é certo, mas com pesar.
Não quero causar alarme,
mas começo a perguntar-me
como a coisa há de acabar

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