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"Só os bens materiais conferirão status. O único objeto de devoção será a saúde física. A única ligação entre os sexos será o prazer. (...) O modo de viver será uniforme em meio a uma promiscuidade geral. Os ritos devocionais que ainda forem executados serão ineficazes."
É o que acontece, diz o Vishnu Purana, um dos livros sagrados do Hinduísmo, quando perdemos todas as coisas espirituais pelo caminho, restando apenas o plano material da existência. Os hindus chamam esse período de Kali Yuga. Na mitologia grega, seria a Idade do Ferro. Lá como cá, ontem como hoje, trata-se de uma época de trevas, um inverno espiritual bastante longo. Já podemos chamá-lo de Modernidade?
Estranho seria se o “espírito do Natal” ainda estivesse vivo em uma época assim. Esta semana, aliás, participei do podcast Quarentena Cult, aqui da Gazeta do Povo, comentando sobre o clássico natalino Milagre na Rua 34, cujo tema é justo sobre isso: a perda do espírito de solidariedade típico desta época do ano. O filme é maravilhoso para nos devolver a esse espírito, mas, por outro lado, é também um documento da imensa perda espiritual que sofremos. Porque não há, no filme, nenhuma referência ao nascimento de Jesus Cristo. E sem ele não haveria São Nicolau, por sua vez origem da figura do Papai Noel.
E hoje é véspera de Natal, data perfeita para quem perdeu mais do que imagina pelo caminho. Porque na véspera original, o que havia? Salvo os envolvidos diretamente no evento do nascimento, somente aqueles capazes de escutar estrelas percebiam o que estava prestes a acontecer, como os reis magos. Imagine você lá na Palestina e, de repente, uma estrela aparece do nada passeando pelo céu? Que catzo?!
Ou seja, a véspera de Natal serve para os que pouco ou nada sabem, para os que pouco ou nada entendem, para os que pouco ou tudo perderam pelo caminho, para os que esperam sem saber o que esperam. Nesta noite, quase tudo para porque algo simplesmente acontece. O quê? Como diz Manuel Alegre, em seu poema Natal:
Acontecia. No vento. Na chuva. Acontecia.
Era gente a correr pela música acima.
Uma onda uma festa. Palavras a saltar.
Eram carpas ou mãos. Um soluço uma rima.
Guitarras guitarras. Ou talvez mar.
E acontecia. No vento. Na chuva. Acontecia.
Na tua boca. No teu rosto. No teu corpo acontecia.
No teu ritmo nos teus ritos.
No teu sono nos teus gestos. (Liturgia liturgia).
Nos teus gritos. Nos teus olhos quase aflitos.
E nos silêncios infinitos. Na tua noite e no teu dia.
No teu sol acontecia.
Era um sopro. Era um salmo. (Nostalgia nostalgia).
Todo o tempo num só tempo: andamento
de poesia. Era um susto. Ou sobressalto. E acontecia.
Na cidade lavada pela chuva. Em cada curva
acontecia. E em cada acaso. Como um pouco de água turva
na cidade agitada pelo vento.
Natal Natal (diziam). E acontecia.
Como se fosse na palavra a rosa brava
acontecia. E era Dezembro que floria.
Era um vulcão. E no teu corpo a flor e a lava.
E era na lava a rosa e a palavra.
Todo o tempo num só tempo: nascimento de poesia.
De todas as decorações natalinas, descarnadas de Deus e por isso ineficazes para significar mais do que esta noite de comes e bebes e troca de presentes, torço para que ao mirar sem querer a estrela no topo do pinheirinho você se lembre disso, de que algo acontece! Contemplando-a não mais como dançarina pela noite, mas como símbolo deste acontecer, quem sabe em futuros Natais você não se pegará a escutando? “Ora (direis) ouvir Jesus!” E estará ouvindo mesmo.
A todos os leitores, companheiros semanais ou eventuais, desejo um feliz e abençoado Natal!