“Em determinadas situações, o objeto de pesquisa simplesmente conduz o investigador por vias inesperadas. (...) Quando isso acontece, a capacidade do indivíduo de lidar com o inaudito, o acidental e o imprevisível é posta à prova.” Foi o que aconteceu com o doutor em Sociologia pela UFPE Eduardo Matos de Alencar, ao começar sua pesquisa em prisões de Pernambuco que resultaram na publicação de sua obra De quem é o comando? O desafio de governar uma prisão no Brasil, recém-lançado pela editora Record, de onde tirei o trecho acima, dito logo no início do primeiro capítulo.
Além de todos os méritos desta obra – absolutamente indispensável para quem trabalha, ou pesquisa, ou se interessa por segurança pública – que merecem abordagem mais detida e profunda, algo que não tenho condição de fazer por aqui no momento, destaco justamente a capacidade impressionante do autor de dar conta de tantos fatores inauditos, acidentais e imprevistos com que se deparou, não cedendo à tentação de se resguardar em uma prévia estrutura teórica explicativa, mas se permitindo construir uma a partir da realidade observada. Isso é algo tão raro no país hoje em dia que parece até milagre, sinceramente.
Mas a realidade a que se refere não é apenas a que estamos habituados a ver no noticiário sobre as péssimas condições de nossas prisões, mas aquela que a governa. O espanto do autor foi da aparente inviabilidade, impossibilidade mesmo, de haver comando das prisões diante de uma situação insustentável e ainda assim existir alguma governança que mantém alguma ordem, por mais frágil e absurda que possa parecer. A pesquisa foi concentrada na prisão de Recife chamada Complexo do Curado, e a ideia-motriz que a norteou “foi a busca por uma explicação sobre como se governa um espaço como o Complexo: essa questão fundamental orientou uma pesquisa quase que essencialmente aberta, onde as perguntas, as hipóteses e as explicações foram surgindo a partir do contato com a realidade”.
O modelo de governança nodal percebido por Eduardo Matos de Alencar em uma prisão pernambucana pode servir como hipótese de explicação de outras realidades sociais
O primeiro desafio do autor, portanto, era narrativo. Era preciso retratar essa realidade o máximo possível e isso foi feito com maestria de romancista, usando por base o primeiro dia de sua visita ao Complexo, o que levou quase as primeiras 100 páginas da obra, das minhas preferidas no livro. Quando vi, estava quase na metade e nem parecia que estava lendo o resultado de uma tese de doutorado, coisa que costuma morrer asfixiada na página 2 pelo rigor excessivo de uma linguagem técnica entediante. Não aqui; o autor conseguiu equilibrar as exigências acadêmicas e científicas com o ritmo de um (bom) romance que entrega ao leitor a realidade da governança do Complexo do Curado e, com ela, a resposta à pergunta que norteou sua ideia-motriz.
A pesquisa foi tão bem feita e abrangendo a totalidade da realidade prisional do Complexo do Curado que, ao chegarmos a essa resposta, até parece que ela estava óbvia o tempo todo, soando a pergunta como mera retórica. Não era, mas o autor teve a gentileza de assim fazer parecer, de tão clara ficou ao final sua resposta: “O Complexo não tem um ‘comando’, pelo menos não no sentido que os presos costumam dar a esse tipo de expressão, ao designar uma facção prisional capaz de exercer controle absoluto sobre as vidas dos detentos. Tampouco é uma prisão cuja ordem seja o resultado exclusivo da operação das peças e engrenagens de uma instituição capaz de exercer controle absoluto sobre todos os aspectos das vidas dos apenados, pela ação de uma burocracia racional, orientada por regulamentos impessoais. Ao contrário, a produção de ordem nele, como em outras prisões do estado, dá-se como resultado da articulação de uma rede complexa de instituições que coordenam a ação de milhares de pessoas pelas influências e mecanismos eficazes para a assunção de resultados coletivos”.
Essa rede complexa de instituições “foi adquirindo a conformação de um modelo de governança nodal, que foi capaz de dar respostas reais, mas evidentemente limitadas, às demandas por coordenação das relações sociais, ainda que endemicamente marcado por momentos ocasionais de ruptura, e sem a menor condição de responder às exigências legais de salubridade, segurança, privacidade, organização, infraestrutura, serviços, respeito aos direitos dos presos e individualização da pena, tendo em vista a reinserção social e o cumprimento da missão institucional prevista pelo ordenamento jurídico do Estado brasileiro”.
Nesse contexto é impossível compreender esse modelo de governança nodal sem destacar a importância crucial dos chamados “chaveiros”, que nada mais são do que presos com relativo, mas suficiente, poder de comando em seus pavilhões e que são essenciais para o improviso com que a prisão é governada: “Nesse modelo, a figura do chaveiro desempenha função central, tanto como intermediário da autoridade do Estado, num contexto de déficit de agentes de segurança penitenciária, infraestrutura precária e superlotação, quanto na distribuição de incentivos que acabam colaborando para a manutenção do sistema”.
Ao terminar a leitura, saí não apenas entendendo um pouco melhor como e por que o sistema prisional brasileiro não implode em carnificina infernal, mas com a impressão de que esse modelo de governança nodal percebido pelo autor pode servir como hipótese de explicação de outras realidades sociais. De imediato fiz uma analogia com a nova realidade político-eleitoral em que os intermediários tradicionais de votos perderam influência considerável com a emergência das redes sociais e trocadores de mensagem que funcionaram como intermediários decisivos na eleição do atual presidente, Jair Bolsonaro. Além disso, a precariedade, o improviso e o surgimento de novos “chaveiros” se fazem presentes no novo governo, que ainda não tem forma clara, com constantes rearranjos e acomodações.
Infelizmente, há poucos analistas políticos atuais dispostos a aceitar a nova realidade e se deixar conduzir por ela para compreensão do que se passa. E por isso considero como a maior virtude da obra de Eduardo Matos de Alencar o seu exemplo de amor à realidade e de honestidade e humildade intelectuais que o levaram a enfrentar a provação de uma pesquisa de doutorado “essencialmente aberta, onde as perguntas, as hipóteses e as explicações foram surgindo a partir do contato com a realidade”. Repito isso porque hoje em dia, no Brasil, é quase milagre mesmo. Não é pouca coisa, não foi pouca coisa. Que outros sigam seu exemplo.
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