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Francisco Escorsim

Francisco Escorsim

De um náufrago para outros náufragos existenciais

(Foto: Midjourney)

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Tenho 47 anos e posso dizer que passei mais tempo da minha vida tentando descobrir quem sou e para que sirvo do que aprendendo qualquer outra coisa. A palavra que mais uso para me definir é náufrago. Do tipo mais kafkiano, aquele que nem sabia que estava em algum navio, nem viu o naufrágio e de repente acordou largado no marzão aberto sem ter a mínima noção de direção, nem tabuinha de salvação.

Quem está assim de uma coisa ao menos sabe: não pode desistir de bater os braços, à espera de algo que lhe ajude a se manter à tona e, com sorte, se salvar. A analogia é boa, mas insuficiente. Náufragos existenciais “batem os braços” pela vida procurando algo que sentem necessitar como o ar que respiram, mas sem saber bem o quê, estranhamente confiando que saberão identificá-lo quando - e se - aparecer.

Assim estava naquele outono de 1998, aos 22 anos, quando entrei numa livraria procurando livros de Sócrates (não o jogador de futebol). Sabe-se lá por que eu achava que a filosofia me traria a resposta da pergunta que eu sequer sabia formular. Ali comecei minha auto-educação, sem nem saber que era isso que fazia. Não foi por gosto, nem masoquismo, mas desespero. Não procurava formação, educação, essas coisas. Se acontecessem, ótimo, mas eu só queria me encontrar, dar rumo a minha vida, mais nada. O resto seria lucro. E foi.

Náufragos existenciais “batem os braços” pela vida procurando algo que sentem necessitar como o ar que respiram, mas sem saber bem o quê

Logo notei que eu não era exceção e quando “mudei de lado”, do lado de quem pode ajudar outros vivendo em situação semelhante, jamais me deixei enganar por essa realidade de desorientação vital generalizada, consequência inevitável de padecermos há gerações desse naufrágio espiritual que transformou o Belo em Gosto, o Bem em Tolerância e a Verdade seria relativa. Consequência: a cultura não cultiva, a educação não educa e religião se tornou uma escolha (ou seja, você é seu deus).

Por isso, quando me tornei professor, sempre me foi mais urgente e indispensável, antes e mais do que tudo, ser esse “algo”, ou seja, orientar existencialmente os alunos mais do que propriamente ensinar o que quer que fosse. Até porque, nessas condições, quem disse que o sujeito quer mesmo aprender alguma coisa? Nem condição de saber o que quer ele tem. Talvez depois dele encontrar um norte pessoal, talvez — repito, talvez! — isso faça sentido e seja, então, desejado por ele mesmo, não porque alguém a quem ele deu autoridade falou que “se não for assim, não será”.

Se isso soa mais como papo de autoajuda ou coisa de consultório psicológico é porque o que entendemos por educação se reduziu tanto a mero ensino ou instrumento de engenharia psicossocial que não sabemos mais o que ela significa e para que serve. E não sabemos mesmo. Para dar um exemplo bastante significativo, Anthony Kronman, reitor da faculdade de Direito de Yale por dez anos (1994–2004), lançou um livro em 2008 cujo título diz tudo: “A finalidade da educação: por que nossas escolas e universidades desistiram do sentido da vida?”.

Não só do sentido da vida, mas também do autoconhecimento. Ou essas coisas foram assunto, matéria na sua escola, ou mesmo em casa? Salvo as raras e felizes exceções, não foram, e ficou cada um por si com seus enigmas pessoais, não raro só tendo de ser decifrados quando inevitável, em momentos de violenta crise existencial ou até transtornos mentais.

Mesmo Viktor E. Frankl, o criador da terapia do sentido da vida (logoterapia), desde o início dizia que ela se aplicava não somente como tal, quando houvesse algo de patológico, mas também como forma de confronto existencial com o desespero e a dúvida se a vida teria sentido. Ou seja, a logoterapia é uma espécie de diálogo socrático antes de tudo. Logo, mais próxima da sala-de-aula do que do consultório.

Por via inversa vieram aqueles que na década de 1970, enxergando o mesmo drama, vislumbraram a possibilidade de usar a filosofia para fins terapêuticos. O nome que pegou foi “filosofia clínica”, mas tiveram outros. Observando o mundo empresarial, corporativo, vê-se que a seu modo tenta também dar conta dessa carência, necessidade, de orientar, ajudar, dar sentido à vida. Surgiram os chamados couchings, counselings, mentorings, e devem estar inventando novos papéis e funções para atender necessidades específicas, cada vez mais crescentes por conta desse estado vital miserável em que nos encontramos.

O que entendemos por educação se reduziu tanto a mero ensino ou instrumento de engenharia psicossocial que não sabemos mais o que ela significa e para que serve

Não defino meu trabalho pelo que o mercado oferece ou denomina, mas a analogia com essas coisas acaba sendo inevitável, pois o terreno é comum em boa medida e as fronteiras nebulosas. Na prática, são espécies da boa e velha matéria escolar chamada OPV (Orientação para a Vida), tenha o nome que tiver, seja voltada para orientação profissional, vocacional, educacional etc. Aliás, há uma proposta para incluir algo assim na BNCC (Base Nacional Comum Curricular), chamada de “Projeto de Vida na Escola”.

Mas como isso funciona na prática? A explicação demandaria muita coisa, mas costumo dar um exemplo pessoal que talvez ilustre o suficiente a resposta. Quando li pela primeira vez “O Apanhador no Campo de Centeio”, de J. D. Salinger, há um momento em que o protagonista, o adolescente Holden Caulfield, completamente naufragado na vida, procura um ex-professor para pedir ajuda, sem saber bem para que nem por quê. Dentre as coisas que professor Antolini lhe disse, esta me marcou profundamente:

“Muitos homens, muitos mesmo, enfrentaram os mesmos problemas morais e espirituais que você está enfrentando agora. Felizmente, alguns deles guardaram um registro de seus problemas. Você aprenderá com eles, se quiser. Da mesma forma que, algum dia, se você tiver alguma coisa a oferecer, alguém irá aprender alguma coisa de você. É um belo arranjo recíproco. E não é instrução. É história. É poesia.”

Sublinhei, transcrevi em vários lugares, para jamais esquecê-lo. Não esqueci. Se hoje faço o que faço, seja como professor ou escritor, faço como quem deu ouvidos ao professor Antolini e hoje não se esquece dos seus naufrágios, tentando falar ou escrever como um náufrago resgatado a outros náufragos à procura de resgate. Tem funcionado. E não é instrução. É história. Talvez poesia. Mas certamente é vida procurando por vida.

Conteúdo editado por: Jônatas Dias Lima

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