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Francisco Escorsim

Francisco Escorsim

300 milhões de razões para falarmos sobre depressão

Hannah Baker, protagonista da série "13 reasons why".
Hannah Baker, protagonista da série "13 reasons why". (Foto: Netflix)

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Mais de 300 milhões de pessoas no mundo sofrem de depressão, segundo a Organização Mundial da Saúde. É possível que você seja uma delas, ainda que não saiba ou se recuse a admitir. Já é considerada a maior causa de problemas de saúde e de incapacidade no mundo, aliás. Já o suicídio, sempre um risco associado à depressão, continua sendo das principais causas de morte no mundo, com mais de 700 mil por ano, com 1 em cada 10 mortes sendo por suicídio, segundo a mesma OMS.

Não sou psicólogo, mas lá se vão mais de dez anos dando aulas e tive de aprender a lidar com essa doença, pois não me faltaram alunos sofrendo por isso. Aprendi muito com eles, mas certas coisas só fui entender mesmo quando eu fiquei doente anos atrás e lembrei o que um de meus alunos havia me dito: “Sabe aquele ditado do otimista e do pessimista diante de um copo com água pela metade? O otimista fica feliz por estar meio cheio, o pessimista fica triste por estar meio vazio. Mas sabe o que um depressivo acha? Que a vida é uma merda”. Quando me contou, eu ri, achando que era piada. Quando lembrei, achei uma descrição perfeita da realidade do depressivo.

Outra coisa que só doente compreendi: que não adianta tentar animar um depressivo, muito menos convencê-lo de que precisaria fazer isso ou aquilo. Se quiser realmente ajudá-lo, vai demorar a obter algum “sucesso”. Por isso, nem comece se não for para se comprometer de verdade com ele. Se for para abandonar no meio do caminho, melhor deixá-lo como está. Perseverança é tudo; por isso, haja paciência, muita paciência, mais um pouco de paciência e, por fim, ainda mais paciência.

Todo depressivo tem uma vida interior rica – creia – e defende essa interioridade com unhas e dentes. Ele não se abrirá facilmente, só fará isso com quem se sinta seguro

Para ajudar de fato é preciso começar pelo óbvio: dando atenção. Esqueça soluções possíveis, ainda que funcionem e sejam o que ele realmente precisaria. Apenas escute, se ele falar; tente conversar, se ele pouco falar. Em ambos os casos, não queira “curá-lo” nem nada. E nunca esqueça: todo depressivo tem uma vida interior rica – creia – e defende essa interioridade com unhas e dentes.

Ele não se abrirá facilmente, só fará isso com quem se sinta seguro. Por isso demora. É preciso passar por inúmeros testes de confiança para que se convença de que você tem interesse real por ele, não porque sua depressão está atrapalhando você ou os outros. Em outras palavras, você precisa se tornar um amigo. Daqueles que, não importa o que o outro faça, estará ali por ele.

Acho que a primeira causa da depressão, ou a mais importante de todas, pelo menos, é a solidão. Mas, preste atenção!, a solidão de que falo não é qualquer uma. É aquela que você sente mesmo tendo esposo(a)(x), namorado(a)(x), amigos, familiares, colegas. Aquela que se impõe como uma prisão quando você percebe que todos à sua volta só estão ali por hábito, por estar, não têm real interesse por você, não lhe prestam atenção de verdade, não se importam realmente com o que se passa com você. Ou, ainda que não seja assim, assim lhe parece. Todo depressivo é injusto, principalmente consigo.

A depressão, em verdade, começa por ser uma derrota para essa solidão, que leva a uma aceitação que faz com que doa menos não desejar mais nada além dela. Aos poucos, a depressão se torna a própria fortaleza da solidão, não deixando mais ninguém “entrar” porque a mera possibilidade de sofrer de novo parece pior do que ficar como está. É o famoso “tá ruim, mas tá bom”. A vida é uma merda, mas pode ficar pior.

É por isso que depressivos costumam criar um mundo à parte, adoram ficar no seu quarto, na sua cama, costumam ter uma relação quase religiosa com certas músicas tristes, filmes, seriados, livros, personagens que lhes são significativos demais, os verdadeiros amigos, a única coisa que lhes impede de ficar pior.

É aí que está o segredo do sucesso de um seriado como 13 Reasons Why, por exemplo, num mundo com 300 milhões de depressivos e sabe-se lá quantos mais que convivem com um. O que esse seriado mostra, no fim das contas, é justamente esse mundo interior de uma menina depressiva que se sente profundamente só e chegou ao seu limite (presta atenção!: ao limite dela, não ao que você acha deveria ser o limite dela), aquele em que a fortaleza se transforma em pena de morte inescapável: o suicídio.

Como lidar com seriados como 13 Reasons Why? Ver ou não ver? Deixar ver ou proibir? Ora, da mesma forma que se deve lidar com todo e qualquer depressivo: dando-lhe ouvidos

Por que o seriado incomoda tanta gente, considerado como uma “defesa” ou incentivo ao suicídio? Porque a perspectiva da narrativa é quase toda da menina, das suas razões para tanto, sem julgá-la. Seria isso incentivar ou justificar o ato? Lembro de uma pesquisa feita sobre o seriado que indicaria que a resposta é “sim”. Mas é perfeitamente possível que também tenha ocorrido o oposto, ou seja, quem tenha desistido disso por ter assistido ao seriado.

Como lidar com seriados assim, então? Ver ou não ver? Deixar ver ou proibir? Ora, da mesma forma que se deve lidar com todo e qualquer depressivo: dando-lhe ouvidos. Por isso, para mim, a pior reação possível é dizer que o seriado “não deveria existir”, “a Netflix deveria tirar do ar”, “proíbam seus filhos adolescentes de ver” e por aí vai. Quem diz isso não percebe que, ao agir assim, está dando mais uma razão para o suicídio da menina, porque isso revela não uma preocupação com depressivos e suicidas potenciais, apenas medo deles, do que eles podem fazer. Sem contar que é uma estratégia estúpida; afinal, o proibido é sempre mais atraente.

O que o seriado mostra, no fim das contas, é o mundo interior de uma menina depressiva que se sente profundamente só e chegou ao seu limite – ao limite dela, não ao que você acha deveria ser o limite dela

Aposto que aqueles que se identificaram com a menina verão nessa atitude de censura ou boicote justamente a confirmação das razões apontadas pela personagem: no fundo, ninguém quer “ver” a realidade, “saber como é”. Nessas horas me lembro de Chesterton quando disse que as crianças têm de saber sobre dragões não para saber que existem, mas para saber que podem ser derrotados.

Por isso prefiro atitude diversa. Se dermos ouvidos àquela menina, o que ela estava dizendo? Que estava só, profundamente só. Que ninguém lhe prestava atenção. Se alguém tivesse sido seu amigo de verdade, será que ela teria chegado a tanto? Creio que não. Isso não significa concordar com suas razões, ou o julgamento que ela fez de quem não foi seu amigo ou até inimigo. Não se trata aqui de encontrar culpados, mas de reconhecer uma condição humana, escutando quem a está vivendo, compreendendo, no fim das contas: ela não teve amigos, estava profundamente só, a depressão foi se instalando, consolidando, tornou-se uma fortaleza até se estreitar ao tamanho de uma banheira.

Tive uma aluna anos atrás que sofria de depressão e me pediu para assistir a esse seriado. O psicólogo dela a proibira de ver; logo, ela assistiu e queria saber minha opinião. Ela esperava um debate intenso comigo sobre culpa, justiça, vingança, maldade alheia, buscava uma justificativa para sua depressão, para o que ela desejava fazer e não ousava dizer em voz alta. Mas só fiz essa mesma pergunta acima: e se alguém tivesse sido amigo dela? Só então ela se deu conta de que não tinha amigos de verdade, só conversava de verdade com o psicólogo (não mais depois dessa, claro) e comigo. Perguntou-me, então: como se faz amigos?

Se tivesse receita não haveria depressão no mundo, mas dei uma sugestão: interesse-se você pela vida de quem você já conhece e veja o que acontece. Mas se interessar de verdade. Ou seja, tentasse ela ser um remédio para a solidão alheia, quem sabe assim não encontraria algum para a dela?

O fim dessa história? Ela mudou de psicólogo, aproximou-se mais de uma prima com quem tinha boas chances de criar uma amizade real, começou a sair mais de casa. Há tempos não dou mais aulas para ela, mas recentemente tive notícias suas. Continua tomando remédio, mas em dose menor. Perguntei se assistiu às temporadas seguintes de 13 Reasons Why. Respondeu-me que não, que enjoou de ser Hannah Baker (a suicida de 13...). Perguntei, então, quem ela era hoje. Depois de pensar, respondeu que não sabe, mas que anda revendo outro seriado, Anne With an E, e gostaria de ser mais como a menina Anne: “porque me dá razões para querer viver, não apenas lamentar”. Sorri do outro lado do WhatsApp. Nem sempre a vida é uma merda.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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