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Francisco Escorsim

Francisco Escorsim

Racismo

No Dia da Consciência Negra, você pode substituir Morgan Freeman por Jorge Amado

Dia da Consciência Negra Jorge Amado
O escritor Jorge Amado, em foto de 1972. (Foto: Arquivo Nacional/Domínio público)

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Havia esquecido que o dia 20 de novembro se tornou feriado nacional. É o Dia Nacional de Zumbi e Dia da Consciência Negra, se entendi direito. E também o dia nacional de receber o recorte da entrevista de Morgan Freeman ao programa de tevê 60 Minutes, em 2005, quando disse não querer um mês da consciência negra porque a história dos negros seria a história da América.

Para contextualizar, lá nos Estados Unidos o dia da consciência negra se dá no fim de janeiro e este mês por lá é dedicado a isso, daí por que Freeman se refere a mês e não a dia na sua resposta. Ao que o apresentador Mike Wallace replicou: “E como vamos nos livrar do racismo?” Resposta de Freeman: “Parando de falar sobre isso! Eu vou parar de chamá-lo de homem branco. E o que eu peço é que pare de me chamar de homem negro”.

Não funcionou. Nem para Freeman, aliás, já que em 2020, no auge do movimento Black Lives Matter, passou a divulgar em suas redes sociais histórias de racismo sofridas por seus seguidores. E aí foi a vez da turma que o malhava pelo vídeo usar isso a seu favor e todo ano vir dizer que o ator teria mudado de ideia, enquanto a outra turma ignora solenemente e segue divulgando o vídeo anterior.

“Eu acho que só há uma forma de acabar com o racismo no mundo: é a mistura de raças. Que brancos, negros, índios, amarelos se misturem e daí resultem povos mestiços. Todas as demais posições assumidas levam ao racismo.”

Jorge Amado

No fim das contas, a pergunta do apresentador é a única que segue valendo: como vamos nos livrar do racismo? Não sei, mas desconfio de muita coisa. Uma delas seria parar de importar supostas soluções para problemas que não são os mesmos que temos por aqui. Isso de chamar de “homem branco” nunca existiu por aqui, por exemplo, muito menos com conotação pejorativa. De “polaco azedo” já fui chamado, mas de “homem branco”, não. E muito menos seria nos EUA, já que cairia na categoria “latino”, seja lá o que eles entendam por isso.

Nós temos por aqui, na verdade, dificuldade de discernir nossas cores. No censo do IBGE de 2022, por exemplo, quase metade da população se autodeclarou parda e apenas 10% preta. Mas o que é ser pardo? É a mesma coisa que mulato?

O IBGE foi fundado em 1936. Em 1940, pardo era aquele que não podia ser classificado como branco, preto ou amarelo, sendo uma categoria residual. Somente em 1950 foi incluída como categoria própria, mas sem definir o que fazia alguém ser considerado pardo. A pergunta sobre isso desapareceu em vários censos posteriores, retomando em outros. Metodologias foram mudadas, retomadas, mas até hoje não se tem clareza do que é ser pardo, restando a autodeclaração como meio de definição.

Lembrei de um verbete na obra de Jorge Amado sobre a Bahia de Todos os Santos, que é um guia para as ruas e os mistérios de Salvador, publicado em 1945. Trata-se do trecho sobre “Mulata Branca”, que acho que vale transcrever na íntegra, em parágrafo separado:

“A Bahia é o reino da mulataria. Não somos negros nem brancos, somos mulatos de tonalidades diferentes buscando sua cor definitiva. Donald Pierson, estudioso norte-americano que por aqui se demorou, criou a expressão ‘branco baiano’ para se referir aos baianos mais claros: ou seja um mulato claro, de traços mais finos. Há um tipo de mestiça –  a mulata branca – de pele branca, de cabelos longos e finos. Os demais traços são mesmo de mulata, mulata a cujo fascínio é difícil escapar, ‘uma perdição’. Mesmo as loiras mais loiras, as brancas mais brancas, trazem a lembrança do avoendo negro nas olheiras pesadas, nas ancas de requebro, nos lábios semiabertos de desejo, no dengue.”

E, se você se perguntou o que pensava o Jorge do futuro, há uma entrevista de 1984 dada ao programa Vox Populi, da TV Cultura, a que vale a pena assistir (está disponível no YouTube). Um jornalista perguntou sobre a crítica que movimentos negros faziam às obras dele, em especial o retrato supostamente erotizado das mulatas. Sua resposta: “Eu acho que só há uma forma de acabar com o racismo no mundo: é a mistura de raças. Não há uma outra. Que brancos, negros, índios, amarelos se misturem e daí resultem povos mestiços. Não há outra solução. Todas as demais posições assumidas levam ao racismo”.

Na próxima quarta-feira, em que o Dia da Consciência Negra será feriado nacional pela primeira vez, desconfio que vale mais a pena espalhar esse vídeo de Jorge Amado do que aquele do Morgan Freeman. E, sobre o que é ser pardo, acho que o Jorge de 1945 é quem mais se aproximou de uma definição, escrevendo algo que não vale somente para os baianos: “Não somos negros nem brancos, somos mulatos de tonalidades diferentes buscando sua cor definitiva”.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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