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Francisco Escorsim

Francisco Escorsim

Do Be Do Be Do

(Foto: Francisco Escorsim/Gazeta do Povo)

A foto acima tirei em abril de 2014. Este quadro (genial) estava pendurado numa das paredes da casa da minha infância, onde à época da foto meus tios moravam e haviam-me convidado para almoçar. Agora está guardado em lugar de gala na minha memória, decorando também a minha infância, para onde costumo ir sempre que chega o dia dos pais.

Havia perdido meu pai poucos meses antes desse almoço e temia que as milhares de pequenas recordações que vivera naquela casa me entristecessem, o que seria compreensível. Mas foi o contrário e foi por causa desse “do be do be do”, tenho certeza.

Esse quadro não era apenas uma peça de decoração da casa. Meu tio sempre foi um grande fã de música, adorava comprar pôsteres de artistas e bandas, e quadros como aquele. Lembro da coleção de cd’s dele, em especial de uma coletânea de hits do Johnny Rivers. Não lembro se cheguei a emprestar dele o cd ou se o comprei depois, mas recordo que gastei o discman de tanto escutá-lo.

Embora seja um disco que me faça sorrir, há uma música que sempre que escuto me deixa melancólico. Trata-se da versão de Rivers para A White Shade Of Pale, da banda Procol Harum. Embora já tenha sido feito mais de 1000 covers diferentes, nenhuma, nem a original, “me pega” como nesta versão de Rivers, que musicalmente não tem grandes diferenças das demais, mas existencialmente faz para mim toda a diferença.

A música é, no fim das contas, sobre uma despedida. A letra conta sobre uma bela mulher que ao abandonar o sujeito apaixonado vai ganhando, para além da aparência que já era fantasmagórica, um tom a mais de palidez. Naquele dia de abril de 2014 isso certamente combinava muito mais com meu estado de espírito do que aquele do be do be do e no entanto….

Caso não saiba, leitor “de-sinatrado”, é o trechinho final da clássica Strangers In The Night, na versão incomparável de Frank Sinatra, quando depois de cantar que “deu tudo tão certo para estranhos na noite”, vem com este breve, mas inesquecível, “do be do be do”. A letra é sobre um casal que se conheceu como “estranhos na noite”, mas a música na verdade me parece menos sobre isso do que sobre “dar certo”. No caso, um relacionamento amoroso, mas acho que vale também para outras coisas, outros tipos de relacionamento, como os que a morte cria entre quem ficou e aqueles que se foram.

A memória deixa de ser apenas um depósito de imagens do que não existe mais, mas também a presença de tudo o que permanece existindo

Bem, você pode se perguntar como um relacionamento desses pode “dar certo” e eu até poderia apelar para filosofices, como as de Nietzsche e Kant, e suas tentativas de encontrar respostas para entender isso, mas eu prefiro o do be do be do. Naquele dia da foto eu ainda não estava do be do be do com a morte do meu pai; não mesmo. Mas sorri ao ler os dizeres naquele quadro, um sorriso que me marcou fundo, pois todas as lembranças que se seguiram (o quadro foi a primeira coisa que notei quando entrei na casa) foram todas envolvidas por ele. Desde aquele dia nós temos estado juntos. Eu e do be do be do.

Porque se tem um bem que a morte traz é isso, não é? Apesar de toda a impermanência, tudo que se foi, tudo que perdemos, tudo o que esquecemos, tudo o que se tornou fantasmagórico e que parece que, quanto mais o tempo passa, um tom a mais de palidez virá até tudo se apagar de vez; enfim, apesar de tudo isso, não é nada disso. A morte não acaba com tudo, faz o acabamento de tudo. Com a morte a vida se torna um quadro pintado agora emoldurado, um filme finalizado à espera do “play” da memória, um romance que a partir de agora sempre que for relido será como que se você o tivesse escrito, uma música no repeat do coração. A memória deixa de ser apenas um depósito de imagens do que não existe mais, mas também a presença de tudo o que permanece existindo, senão tão vivo quanto antes, mais significativo do que nunca.

Ando a reler Em Busca do Tempo Perdido, de Proust. Talvez nenhum outro artista tenha conseguido retratar isso tão bem, o quanto a memória é, na verdade, um tempo redescoberto. Sei que hoje há poucos leitores de livros, menos ainda de ficção, menos ainda os que encaram os 7 volumes dessa obra magnífica, então sugiro uma alternativa que, se não se compara, ao menos serve para dar uma pálida ideia do que Proust conseguiu fazer. Já assistiu à animação Ratatouille? Lembra daquela cena em que o crítico gastronômico, ao experimentar o ratatouille, é imediatamente devolvido à sua infância e à comida da sua mãe? Então, isso é Proust, mas muito Proust.

No filme, o crítico muda, não continua mais sendo o mesmo depois de passar por essa experiência. Ele morre e renasce, redescobrindo a vida. Quando o tempo redescoberto não apenas te devolve à quem você foi no passado, ao que você viveu, mas te reinstala no presente mostrando quem você deveria ser e você começa de fato a ser, ah, daí… daí é do be do be do.

Talvez seja exagero dizer que foi essa relação que a morte criou entre mim e meu pai, mas se não chegou nisso ainda, um dia chega. Por enquanto, tem sido como disse Glenn, um dos melhores personagens do seriado The Walking Dead. Se não me engano foi no 9.º episódio da 6.ª temporada que Enid, uma adolescente, queria fugir da dor de viver, da dor pela morte dos pais, simplesmente fugir de tudo, de si mesma no fim das contas. E Glenn, um dos adultos, a impede dizendo que é fugindo que perdemos as pessoas, mesmo depois delas terem morrido. Ela não entendeu e assim ele seguiu explicando: “As pessoas que amamos nos tornaram quem somos. Continuam sendo uma parte de nós. Se você fugir de ser você, a última parte deles que segue viva, quem você é, será perdida. Eles continuam aqui porque você continua aqui.”

É por isso que escrevo, pai.

A todos os pais, leitores ou não, desejo um feliz dia do be do be do.

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