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Alguém sabe como ficarão os Oscar do passado, quando a premiação ainda era cinematográfica? Agora que o critério de avaliação independe até de existir um filme, mais importando se foram contratados x ou y número de z ou w tipos de pessoa para sua produção, periga recolherem os prêmios já dados que descumpriram retroativamente essa admirável regra nova, não? Se forem, é certeza que Jack Nicholson perde o seu de melhor ator em Melhor é Impossível, já que seu personagem é um tudofóbico.
Reassisti ao filme, que, embora seja de 1998, parece ser muito mais antigo pela impossibilidade atual de um personagem como Melvin Udall ser admitido como retratável nessa era do cancelamento em que vivemos. Ele joga no lixo o pet do vizinho, que também ofende por ser homossexual. É grosseiro e desagradável com mulheres, especialmente quem lhe serve, de garçonetes a secretárias. É o retrato perfeito do que hoje chamam de “discurso de ódio”, praticamente um Twitter ambulante. Logo, não poderia existir, mas já que está aí, sendo lembrado por cancelados como eu, tem de ser cancelado também. Se nem E o Vento Levou escapou...
Entretanto, há um problema aqui. Porque Melvin Udall sofre de transtorno obsessivo-compulsivo e muito de sua misantropia decorre disso. Pela lógica sentimental canceladora, deduzo, não pega bem cancelar pessoas portadoras de condições especiais. Neste caso, quem teria de ser cancelado é quem não tem lugar de fala e discriminou Melvin no filme, como os que aplaudiram sua expulsão de um restaurante, o vizinho que se irritou com ele, a garçonete que concluiu que a ajuda dele para seu filho seria em troca de sexo, e por aí vai, não é?
Sem amor, beleza, verdade e bondade se fragmentam, perdendo-se de si mesmas
Enfim, deixo aí a questão para os canceladores. Eu, como não sou um, fico com a “solução” do filme para os males de Melvin, dos demais personagens e, por que não?, dos canceladores de todas as épocas. Para enxergá-la, porém, é preciso seguir a dica dada por Simon, o vizinho gay de Melvin, interpretado por Greg Kinnear, quando disse: “Se você observar alguém o suficiente você encontrará sua humanidade”. Ou seja, se você considerar os personagens apenas pela superfície, não verá mais em Simon do que um vaidoso covarde; em Melvin, o misantropo doente egoísta; e em Carol, a personagem interpretada por Helen Hunt (que também ganhou um Oscar por isso), uma mãe solteira carente meio histérica. Façamos como Carol, portanto, durante a viagem de carro dos três, quando Simon começou a contar sua história de vida e ela decidiu estacionar para poder lhe dar atenção total.
Quem primeiro no filme fez isso por outro, porém, foi Verdell, o cachorro de Simon. Sim, o cachorro (eu disse que o filme é mais atual do que à época). Quando Melvin foi obrigado a cuidar do bichinho, este o observou com tanta atenção que passou a imitá-lo, saltitando pelas calçadas para não pisar nas linhas, como o TOC de Melvin o fazia caminhar. E é isso o que acontece quando observamos de fato o outro: passamos a nos colocar no lugar dele, a compreendê-lo, portanto. E é claro que um olhar assim gera um efeito no outro. Em Melvin, foi o que bastou para começar a derretê-lo por dentro. Eis a humanidade no outro que pode ser encontrada até por um cachorro.
Algo semelhante aconteceu quando Carol, ao preparar seu banho sentada na banheira, teve sua beleza notada por Simon que, por observá-la direito, redespertou sua intuição artística, que, somado à atenção dada por ela à sua história na viagem, o fez reassumir as rédeas de sua vida. E o que dizer da atenção de Melvin por Carol; se no começo ele apenas a ajudou por interesse próprio com a doença do filho dela para que pudesse lhe servir no restaurante, depois se tornou atenção à mulher diante dele, apaixonando-se, dizendo-lhe: “Você me faz querer ser alguém melhor”. E, se Carol não conseguisse observar em Melvin algo além da carapaça doentia, jamais teria se deixado encantar, dando uma chance de serem felizes juntos.
O filme, no fim das contas, dá uma bela imagem do que é o amor, em vários de seus sentidos. Melvin é um escritor e, no início da história, está a escrever uma cena em que a inspiração o levaria a completar a frase “Amar é...”, mas é interrompido por seu vizinho à procura do cachorro que ele havia jogado no lixo. O restante do filme é o complemento desta frase. Amar é o que dá vida à vida. Nossos três personagens podem ser vistos como símbolos da Beleza (Simon), da Verdade (Carol) e da Bondade (Melvin), os transcendentais do Ser que, por sua vez, é Amor. Mas, sem amor, beleza, verdade e bondade se fragmentam, perdendo-se de si mesmas.
Simon, depois de ficar desfigurado pela surra que tomou, olhando-se no espelho, disse: “Para onde eu fui?” A beleza sozinha nada é, a não ser vaidade. Já a bondade, sem amor, é apenas egoísmo travestido de boa ação, como a de Melvin pelo filho de Carol. E a verdade, sem amor, se torna seca, fria, até cruel, como Carol ao dizer para Melvin no fim da viagem que ele despertava o pior nela. Quando falta amor, a vida se torna um naufrágio em que nos contentamos com alguma boia qualquer encontrada pelo caminho, como um remédio. Numa das melhores cenas do filme, Melvin, atarantado pelas mudanças que se permitiu viver, acolhendo um cachorro, ajudando o vizinho e se apaixonando por Carol, procurou seu terapeuta “exigindo” que o ajudasse. Na saída, mirando a sala de espera lotada de pacientes, disse: “e se isso for o melhor que conseguirmos?”
Para não ser, é preciso que a verdade nos liberte revelando o real problema: carência de amor. Carol, sendo sua “representante”, chega a ser cruel consigo ao dizer que invejava casais de mãos dadas por não ter alguém para fazer o mesmo, mas não mente para si que é essa sua verdade: quer alguém para amar e ser amada. Essa é sua busca e apostará no amor de Melvin, que, por sua vez, por querer amá-la começa a querer ser alguém melhor e, por isso, abriga Simon em seu apartamento por pura bondade. Algo que não seria possível se o amor por Verdell, lá no início, não começasse a preencher sua vida de... vida. Ao assim fazer, até um princípio de cura começou a acontecer em Melvin, que no fim descobriu, atônito, que esquecera de fechar a porta de casa como sempre fazia. Porque quando abrimos a porta do coração, o amor entra e faz morada. E não há nada melhor do que isso para se conseguir nesta vida.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos