O longo corredor acendeu as lâmpadas automaticamente à medida que Augusto caminhava, lentamente, como quem delas dependesse. Mas não havia luz no trecho diante da porta do seu quarto. Apertou os olhos e encontrou a fechadura. Lá dentro, tudo arrumado como se ele nunca estivesse estado ali. Conferiu o frigobar. As vodcas tinham sido repostas. Sentiu uma leve pontada na têmpora esquerda, alertando que não. Mas abriu as garrafas, deslizando o conteúdo num copo alto, completando com coca-cola.
Livrou-se do paletó, jogando sobre a pasta que deixara numa das cadeiras. Ligou a tevê, só para ter alguma aparência de companhia. Impaciente, deu um longo gole, fazendo questão de sentir a garganta arder. Afrouxou a gravata e acendeu mais um cigarro. Evitou contar quantas carteiras tinham ido só hoje. Abriu a cortina e a janela. A noite trouxe um vento gélido e cortante. Não se incomodou e debruçado ali ficou, a respirar.
Eram quase dez da noite e o cliente, embora insatisfeito, queria levá-lo para jantar e depois conhecer a “noite” da cidade, “se é que o doutor me entende!” Infelizmente, entendia mais do que gostaria. Sabia que já aguentara demais. Ligou de imediato, disse que não se sentia bem, que iria deitar sem jantar. Aliviado, resolveu tomar banho.
Embora forçasse o pensamento nas preocupações do dia de amanhã, sua mente insistia em revisitar lembranças da infância
Havia uma bela e grande banheira que imediatamente o lembrou dos primos e irmãos, da casa de praia, da piscina de plástico que o avô entupia de sabão, dando um banho coletivo nos netos que se divertiam formidavelmente, competindo pela mais bela fantasia de espuma. No fim, enrolado na toalha, adorava sentar numa das cadeiras de praia largadas pela varanda, contemplando as bolhas de sabão vagando a esmo no ar.
Quando ia se deixando envolver pelas bolhas, sopradas por uma brisa que as levitava sem esforço, levando a alturas impensáveis, guilhotinou-se: “Certo, e agora só faltam as velas acesas e as pétalas de rosa com vinho branco. Larga mão de palhaçada!” Nunca se permitia.
Tomou uma breve chuveirada e, enrolado no confortável roupão do hotel, deitou-se na cama, fumando outro cigarro, desta vez com a tevê e as luzes apagadas. Embora forçasse o pensamento nas preocupações do dia de amanhã, sua mente insistia em revisitar lembranças da infância. Queria ter sido pirata, é a recordação da vez, por conta de um filme visto com o mesmo avô nas férias de julho. Encantara-se com as velas do navio, as viagens infindas, as aventuras em busca de tesouros e os lugares nunca antes visitados por ninguém.
“Até que não seria mau mesmo. Não ser responsável pelo próprio destino, entregue aos rumos da embarcação, viver sem lar ou porto de chegada, desaparecendo outra vez no mar quando a ânsia de criar raízes aparecesse...”
Por quê? Por que não largava tudo? Esta vida maldita de advogado nunca recompensava. Se ainda fosse dono do próprio escritório, vá lá, talvez tivesse alguma chance! Mas ganhando a merreca que ganhava para trabalhar de dez a doze horas por dia, sem qualquer perspectiva de progredir na carreira? Aliás, que carreira? Embora fosse um escritório gigantesco e rico, não existia plano de carreira nenhum, para ninguém.
Brilhava no quarto o reflexo iluminado da cidade, alimentado vez ou outra pelos feixes de luz dos faróis dos carros passando pela parede oposta. Voltou o olhar à janela, mas nada enxergava, a não ser uma frágil coberta luminosa. Acima dela, uma nítida linha de sombra separando tudo da escuridão total. Ficou algum tempo afinando o olhar no breu da noite e percebeu surgir uma estrela a cintilar frágil e distante.
E se tentasse concurso público, como todo mundo insistia, desde sempre, que ele fizesse? Tem 29 anos, ainda é plenamente possível. Mas não tem paciência nenhuma para estudar. Aliás, odeia o Direito. Por que não desistir, então? Porque não seria uma solução. Não tem interesse por nada, nem ninguém. De pirata sonhou ser jogador de futebol, depois cantor de banda de rock: eis todo o repertório do que quis ser quando crescesse. Cresceu e, entre Marketing noturno, Direito diurno e mandar às favas a universidade, escolheu o que a mãe preferia. Fiel a si mesmo, continuava a não decidir.
Por que não largava tudo? Esta vida maldita de advogado nunca recompensava. Se ainda fosse dono do próprio escritório, vá lá, talvez tivesse alguma chance!
Era cansativa essa confabulação interior, cada vez mais frequente. Aos poucos, o silêncio foi se impondo, sossegando a memória e a angústia sobre o que será do futuro. Imaginou que talvez fosse possível, com a devida concentração, ouvir os rumores daquela estrela da qual não tirou os olhos desde então. Mas tudo que conseguiu escutar foi um aperto familiar na boca do estômago, e não estava com fome. Precisava se distrair, com urgência, mas não queria o celular.
De um salto, agarrou sua pasta, tirando o notebook que em segundos brilhava palidamente no quarto propositalmente mantido no escuro. Evitou as redes sociais. Visitou os sites de sempre, lendo a citação de um livro de um tal de Bernanos: “Não há jogo nenhum – disse ele. Nasci assim, aos pedacinhos, do pó. Para me ver seria preciso um olho facetado, como o das moscas. E toda minha geração se parece comigo”. Parou de ler, olhando fixo a parede à sua frente. “E toda minha geração se parece comigo…”, repetiu em voz alta. Quem dera soubesse quem era sua geração. Quem sabe, assim, descobrisse quem ele mesmo era?
Levantou-se e foi à janela fumar outro cigarro. Conseguiu, por instantes, instalar-se no silêncio, fixando o olhar naquela estrela que parecia aos poucos se aproximar. Sentiu uma vertigem. Era como se crescesse, tanto que a estrela se fez um pequeno broche. Pegou-a entre as mãos, encantando-se ao descobrir que a luz dela era, na verdade, reflexo de outra. Sem saber por quê, colou ao ouvido como uma concha de praia. Reconheceu a voz familiar: “As raposas têm covas e as aves do céu, ninhos, mas o Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça”.
Era o avô, naquela mesma casa de praia, lendo o Evangelho aos netos, antes de eles dormirem. Nunca entendia direito o que significavam essas coisas da Bíblia, nem se interessava por saber. Gostava apenas de ouvir a voz mansa e acolhedora do avô a recitar essas histórias, reais ou imaginadas. Mas, agora, a coisa parecia fazer sentido. Qual? Desabou de novo na cama, sem saber por onde continuar a pensar. Talvez não devesse. Vai ver é assim que as coisas são, sem sabermos direito como, do pó, nascem pedacinhos.