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O que não é imaginável não é pensável. Faça o teste: escolha uma palavra qualquer de uma língua que você desconhece, em que os signos lhe parecem desenhos ou hieróglifos, como costumam parecer aos brasileiros o árabe e as línguas asiáticas. Sem consultar nada, o que significa essa palavra?
Ajudo com um exemplo do japonês: 思おもう. E aí? Deu “tela azul”, eu sei. Você não consegue nem saber como se lê, muito menos pensar sobre o que significa. Isso acontece porque falta um ponto de partida, que é sempre uma ou mais imagens que a imaginação associa para podermos pensar a que se refere a palavra. É da imagem que se chega ao conceito, já ensinava Aristóteles.
Agora, escolha outra língua estrangeira, que você também desconhece, mas que seja da mesma “família” do português, em que as letras e palavras guardam alguma proximidade com as nossas. Por exemplo, a palavra “peşte” em romeno (sim, o romeno é língua românica).
Por que a existência de um partido comunista é aceitável em vários países, como o nosso, mas um partido nazista não?
Perceba que, antes de você pensar em uma definição ou significado, “saltou” da sua memória uma imagem do que significa “peste” em português. Não saltou o conceito, mas uma imagem. Talvez alguma da pandemia da Covid, ou a de alguma criança “pestinha” que você conhece ou mesmo foi. Mas... e se eu te disser que “peşte” não é peste? Voltamos à tela azul.
Se é assim para o ser humano, é também para as civilizações. Nenhuma começou com “conhecimento científico” antes de ter seus mitos e símbolos, ou seja, imagens do cosmos e da vida. É por elas que os antigos se orientavam e educavam as novas gerações. Continua sendo assim, aliás. Basta ver a diferença entre o que é o ensino infantil e o superior, por exemplo.
Isso significa dizer que sua visão de mundo, suas crenças, seus valores também estão enraizados antes em imagens que podem ou não conter discursos, narrativas, mas não se reduzem a isso. E são essas imagens que dão o limite do pensável, logo, do aceitável.
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Bom exemplo disso está na diferença de tratamento que boa parte do mundo ocidental dá para duas aberrações ideológicas: nazismo e comunismo. Por que a existência de um partido comunista é aceitável em vários países, como o nosso, mas um partido nazista não? Porque no imaginário ocidental o ideal do comunismo como sendo algo bem intencionado é mais forte do que as imagens de sua realidade concreta repleta de ditaduras, totalitarismo, gulags e assassinatos em massa. Já as imagens do ideal nazista praticamente desapareceram, restando, ainda bem, apenas as da realidade dos campos de concentração, genocídio etc.
É por isso que, nas disputas de narrativas atuais entre esquerda e direita, esta é retratada por aquela como sendo sempre “extrema”, o que no imaginário popular é quase um sinônimo de ser nazista, fascista etc. Daí porque quem não esteja nem lá nem cá dos extremos políticos, quando chamado a decidir entre ambos, acaba optando pela esquerda. Porque parece menos pior ser governado por um comunista. Está aí o Mélenchon, da extrema esquerda francesa, para comprovar isso. Preciso lembrar da preferência dos nossos “moderados” brasileiros por um amigo de ditadores comunistas e ex-condenado por corrupção que, agora no poder, sente-se autorizado a extremar suas posições esquerdistas?
Volto ao imaginário individual. O que é ser de esquerda ou direita? Perceba que, antes de você ter pensado em escolher ser de lá ou de cá, já possui um imaginário a respeito de ambas e, quase sempre, somos de esquerda ou direita sem nem sabermos direito como e por quê.
Nas disputas de narrativas atuais entre esquerda e direita, esta é retratada por aquela como sendo sempre “extrema”
Dou meu depoimento pessoal. Quando estava lá pelos meus 20 e poucos anos, dei-me conta de que era de esquerda sem saber a razão. Não havia me tornado por pensar sobre, por escolha, mas porque durante toda minha infância e adolescência (anos 80 e início dos 90) a imagem da esquerda que tinha era de lutar pelo “certo”, enquanto a da direita era a de ser a responsável e defensora da ditadura da qual tínhamos saído.
No momento, deixemos de lado as razões para ter apenas essas imagens, falar de possível doutrinação etc.; quero apenas destacar o quanto o pensável é delimitado pelo imaginável e, com isso, os limites do aceitável. Meu limite com a direita era ter o mínimo de esquerda. Desconfio que não era exceção. Se não fui, eis boa parte do “segredo” do sucesso do PSDB à época.
Não à toa, os tucanos praticamente desapareceram assim que a direita não apenas reapareceu como tal, mas com força suficiente para preencher o imaginário com seus próprios limites, não os da esquerda.
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Se você pensar bem, verá que o limite do direitista hoje é este: não ter nada de esquerda. O que lhe traz uma brutal dissonância cognitiva quando seus líderes se aliam com “esquerdistas mínimos”. É também o que explica a grande dificuldade da direita de manter alianças, aliás, vendo em tudo traição.
Enfim, já que imagens importam mais do que parece, não custa ampliar um pouco nossos limites do que seria aceitável. Termino com uma imagem de Nelson Rodrigues, que já citei por aqui, sei lá quantas vezes. Em uma entrevista a Clarice Lispector, quando perguntado se era de direita ou de esquerda, respondeu: “Eu me recuso absolutamente a ser de esquerda ou de direita. Eu sou um sujeito que defende ferozmente a sua solidão. Cheguei a essa atitude diante de duas coisas, lendo dois volumes sobre a guerra civil na História. Verifiquei então o óbvio ululante: de parte a parte todos eram canalhas. Rigorosamente todos. Eu não quero ser nem canalha da esquerda nem canalha da direita”.
P.S.: 思おもうé “pensar”; e “peşte” é “peixe”.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos