Como eu ia escrevendo na semana passada, é preciso dar a devida atenção ao discurso na CPAC brasileira do assessor da Presidência Filipe G. Martins, que, dirigindo-se aos novos intermediários no jogo político, apontou quatro coisas que seriam necessárias neste momento. Repito-as: 1. confiar no presidente por ser o símbolo aglutinador dos valores conservadores; 2. unir esses intermediários espalhados em movimentos ou iniciativas individuais em uma instituição sólida sem esperar que isso venha do presidente; 3. defender esses valores no front cultural especialmente com a criação de obras artísticas, especialmente narrativas para “contar a história real do que aconteceu”, novos órgãos de mídia etc.; 4. criar uma estratégia de mobilização permanente para atuação nas eleições futuras.
Tratei dos pontos 1 e 4 na coluna anterior. Hoje quero dar destaque ao ponto 2, o que exige entender melhor quem seriam esses intermediários e quais seriam suas ações. Mas para isso é preciso saber quem são, ou eram, os antigos intermediários que estariam, se não sendo substituídos, perdendo importância. Em janeiro de 2018, o então doutorando e hoje doutor pela UFPE Eduardo Matos de Alencar publicou um artigo importante em uma revista virtual, intitulado Onde os fracos não têm vez, em que analisou esse fenômeno do sistema de intermediação política para tratar das possibilidades de vitória de Jair Bolsonaro na eleição que viria, e sendo cético em relação a isso pelo fato de o candidato não ter aqueles antigos intermediários que seriam decisivos para angariar votos.
Essa nova forma de intermediação política está ainda mais para a fase do “caos criativo” que para uma nova ordem sendo estabelecida
Eram eles, segundo o autor do artigo: “Prioritariamente, um vereador negocia com lideranças comunitárias ou diretamente com o eleitor. Um prefeito negocia com lideranças e com candidatos a vereador. Um deputado negocia com prefeitos, candidatos a vereador e lideranças comunitárias. E por aí vai. Até chegar aos candidatos à Presidência, as negociações podem atingir um nível de complexidade impossível de descrever com precisão. Porém, a forma como se negocia aquilo que importa, isto é, o voto, não muda substantivamente”.
Como já trabalhei em eleições municipais, coisa de quase 20 anos atrás, o retrato que Eduardo fez no seu texto baseado na sua experiência pessoal batia perfeitamente com o que eu havia vivido também. Comungava do seu ceticismo; porém, com a vitória de Jair Bolsonaro, capitaneada pela novidade da força das redes sociais e trocadores de mensagens, como o WhatsApp, essa intermediação essencial foi pulverizada, ruindo toda a base de sustentação do sistema. Mas, como esse “andar de baixo” só ganha relevância de fato em épocas de eleição, a realidade é que essa nova forma de intermediação está ainda mais para a fase do “caos criativo” que para uma nova ordem sendo estabelecida; a fala de Filipe Martins parece ser o ponto de partida para tanto, se não para todos os conservadores, ao menos para os bolsonaristas.
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Quem primeiro se movimentou neste sentido, porém, foi o MBL, que, junto à guinada de moderação discursiva para se recolocar no debate público polarizando com o bolsonarismo e abrindo diálogo com a esquerda, deu também início a ações no intuito de levar o liberalismo para o povo mais pobre, trabalhando justamente naquele “andar de baixo” de forma mais próxima, mas de alcance mais limitado e demorado que por meio das redes sociais, onde o bolsonarismo reina. Fora delas, porém, o bolsonarismo parece muito desarticulado, depositando suas fichas na ação do governo, como se percebe pelo próprio discurso de Filipe Martins ao pedir que ajam sem esperar o presidente ter a iniciativa.
Outra prova da desarticulação veio com a reportagem recente de Felipe Moura Brasil para a revista Crusoé, em que mapeou alguns desses intermediários bolsonaristas que foram albergados em cargos públicos. As mensagens de celular obtidas pelo jornalista demonstram que a articulação deles com as supostas lideranças, como o próprio Filipe Martins e Carlos Bolsonaro, é mínima, quando existente. Basta ver a alegria, por exemplo, de uma das intermediadoras quando soube que Carlos Bolsonaro havia retuitado um post dela, dizendo “ganhei o dia”. Típica reação de quem não tinha contato mais próximo com a pessoa. Some-se a isso a mensagem do próprio Filipe Martins em resposta a outro intermediário, dizendo que Carlos Bolsonaro ficava semanas sem falar com ele, e por isso não era para o sujeito esperá-lo tão cedo. Ora, isso não combina com quem estaria no comando de uma “milícia virtual” para praticar assassinatos de reputações.
Fora das mídias sociais, o bolsonarismo parece muito desarticulado, depositando suas fichas na ação do governo
Embora a reportagem tenha sido vendida como se provasse métodos escusos desses intermediadores, o máximo que apresenta são indícios dessa possibilidade (e olhe lá), pois nem sequer citou ao menos um desses possíveis assassinatos que teriam ocorrido a mando ou autoria dessas pessoas. E, se tudo fosse tão tramado assim como se deu a entender na reportagem, alguma mensagem nesse sentido haveria. No fim das contas, a reportagem vale tão-somente pelo mapeamento de intermediadores que obtiveram cargos públicos, o que é de interesse público, sendo que o restante precisaria de muito mais verificação do que a que foi feita – o que é lamentável, pois no fim das contas ficou parecida com as reportagens do The Intercept Brasil, que toma suas próprias interpretações como sendo mais importantes que os fatos reportados. Com isso, por óbvio, não estou a defender as ações desses intermediários, que pouco acompanho; apenas constato que a reportagem não entrega o que propagandeou e, do que revelou, mostrou muito mais uma desarticulação desses intermediários com as lideranças bolsonaristas do que o contrário.
Voltando ao discurso de Martins, a convocação para união desses intermediários espalhados e desarticulados numa instituição sólida tem essa intenção de organizar e mobilizar melhor esse “andar de baixo”. Como, porém, a solução para as crises e brigas dentro do bolsonarismo tem sido mais a de apelar à confiança na pessoa do presidente, “senão o PT volta” e coisas assim, do que discutir e equacionar as diferenças com base em valores conservadores, o que virá (se vier) como instituição sólida parece estar mais próximo de um partido bolsonarista que de um think tank conservador. Qual o problema disso? No plano político, nenhum; pelo contrário, demorou até para isso acontecer. O risco está no campo da cultura. É aí que o item 3 da pauta de Martins ganha dimensão muito maior do que se imagina. Mas a coluna já ficou extensa demais para tratar disso hoje; retorno ao tema na semana que vem.