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Francisco Escorsim

Francisco Escorsim

Fogo no parquinho da direita (parte 3)

O filósofo Olavo de Carvalho | RODOLFO BUHRER/Gazeta do Povo
O filósofo Olavo de Carvalho. (Foto: )

Enfim, o mais importante no discurso proferido na CPAC brasileira pelo assessor da Presidência Filipe G. Martins, que, dirigindo-se aos novos intermediários no jogo político, apontou quatro coisas que seriam necessárias neste momento. Lembra quais são?

Ei-las: 1. confiar no presidente por ser o símbolo aglutinador dos valores conservadores; 2. unir esses intermediários espalhados em movimentos ou iniciativas individuais em uma instituição sólida sem esperar que isso venha do presidente; 3. defender esses valores no front cultural, especialmente com a criação de obras artísticas, especialmente narrativas para “contar a história real do que aconteceu”, novos órgãos de mídia etc.; 4. criar uma estratégia de mobilização permanente para atuação nas eleições futuras.

Comentei os itens 1 e 4 no primeiro texto desta série e o 2 na coluna da semana passada. Resta o terceiro, que, se em outros tempos soaria deslocado no contexto criado pelos demais itens, hoje é compreensível pelo transbordamento da disputa político-ideológica para o campo artístico-cultural. A primeira consequência nefasta disso, de a cultura ter se tornando um “front” de guerra há décadas, é a confusão instalada entre arte e propaganda. Pegue-se como exemplo dois documentários retratando a história recente do país – Democracia em Vertigem, de Petra Costa, e Não Vai Ter Golpe, do MBL, que já comentei por aqui –, ao que se somará em breve o documentário Nem Tudo Se Desfaz, de Josias Teófilo. É impossível, por mais artísticos que sejam, dissociá-los da propaganda, ainda que não tenham essa intenção ou finalidade. É o preço que todos pagamos pela tal “guerra cultural” em que vivemos.

A forma como diferenças e desavenças são e serão administradas no bolsonarismo ganha significado maior do que parece à primeira vista

Mas o risco maior é outro. Para entender qual, precisamos destacar alguns dos ensinamentos de Olavo de Carvalho sobre o que é a cultura, como ela se desenvolve e se degrada. A escolha de falar sobre isso segundo o filósofo que hoje dispensa apresentações é por ser ele a maior influência de Martins e dos conservadores brasileiros em geral, sendo importante inclusive para seus inimigos, conservadores ou liberais, pois, goste-se ou não, se não existisse o trabalho público de Olavo de Carvalho iniciado nos anos 1990, a “nova direita” não teria sido parida e tampouco é possível hoje se posicionar no debate público sem alguma referência a ele. Portanto, sua importância para a eclosão da “nova direita” é não apenas inegável, mas primordial e avassaladora.

Pois bem, em um dos textos mais importantes do best-seller O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota, intitulado "Espírito e cultura: o Brasil ante o sentido da vida", Olavo parte da premissa de que a semente da cultura está plantada no coração do homem como um impulso à procura de um sentido para a vida. Esse impulso seria ascensional, espiritual, e “começa sempre com um indivíduo isolado – e que, no curso da sua caminhada, é levado a isolar-se ainda mais da comunidade em busca da necessária condição de concentração espiritual –, e se completa com a irradiação de parte dos conhecimentos obtidos, de início numa discreta roda de companheiros ou discípulos investidos da mesma disposição para o isolamento e a concentração, em seguida em círculos cada vez maiores, até abranger comunidades, sociedades e civilizações inteiras”. Desse “núcleo irradiante (...) se formará, com o tempo, a cultura”.

Tomando o próprio Olavo como exemplo de quem realizou aquele esforço solitário, formando a partir do seu núcleo irradiante uma cultura que hoje abrange muito mais do que o círculo de seus alunos e leitores, também já é possível observar a consequência inevitável desse processo, segundo o próprio filósofo: “é uma fatalidade da constituição humana que a reprodução das condições internas e psicológicas do aprendizado, que depende exclusivamente da livre iniciativa dos futuros aprendizes e só pode ser estimulada, mas não determinada pela cultura, não acompanhe jamais a velocidade da proliferação das criações culturais que refletem o núcleo inspirador inicial de maneiras cada vez mais distantes, apagadas, indiretas e finalmente invertidas. O que começou como uma intuição direta da ordem suprema termina como debate entre ignorantes e cegos esmagados sob toneladas de registros materiais tornados incompreensíveis”.

Ainda que esses “registros materiais” de hoje em dia sejam mais pixels, posts, vídeos e áudios na internet, o descompasso descrito é evidente, não sendo preciso esforço para se concluir em qual dos cenários estamos, se próximos do “núcleo inspirador” ou do “debate entre ignorantes e cegos”, que seria o “terceiro momento” desse processo cultural, segundo Olavo, no qual o amor a Deus e ao próximo que fundamenta os dois anteriores “se degrada em lisonja, a lisonja da manipulação e manipulação em ódio. No fim, já não é possível distinguir uma coisa da outra e o ponto mais fundo do engano se atinge quando o grosseiro e o brutal, a revolta e o fanatismo passam a ser aceitos socialmente como manifestações do ‘autêntico’”. Sobre o fanatismo, há também toda uma seção de textos no livro referido, dentre eles "Ainda o fanatismo", em que o filósofo se debruça sobre um dos traços do fanatismo conforme anotado por Viktor Frankl: “o desprezo pela individualidade alheia”.

Sigamos com Olavo: “Para o fanático, só há um objetivo autêntico: as metas do seu partido ou seita. As outras nada valem em si mesmas, tornando-se boas ou más conforme se ajustem ou se afastem daquelas. (...) Se, no entanto, você insiste em reafirmar seus próprios critérios, independentemente do serviço ou desserviço que prestem às metas políticas que ele tem em vista, o fanático tem de ignorar você como irrelevante ou enquadrá-lo como inimigo. Reconhecer seus objetivos vitais como independentes, ah!, isto não. Nunca. Esse reconhecimento equivaleria a fazer do sacrossanto ideal político que ele cultua um simples valor vital entre outros, e isto é precisamente o que ele não pode admitir de jeito nenhum. Daí que ele seja incapaz de compreender os outros nos próprios termos deles. Ele tem de traduzi-los na linguagem do seu próprio ideal, isto é, reduzi-los a amigos ou inimigos do partido, e julgá-los em função disso, por menos que caibam nesse molde pré-fabricado”.

Creio não ser preciso dizer mais para demonstrar qual o risco maior a que me referi com o apelo de Martins para a atuação cultural neste contexto de tentativa de criação de uma instituição sólida a unir conservadores para não apenas defender seus valores, mas criar uma estratégia de mobilização eleitoral permanente cerrando fileiras em torno de Jair Bolsonaro, em cuja confiança estará a “pedra angular” dessa construção. Por isso a forma como diferenças e desavenças são e serão administradas ganha significado maior do que parece, pois é através disso que se poderá avaliar o quanto a individualidade será (des)prezada. Também por isso que iniciei esta série de artigos destacando o episódio do desconvite a Nando Moura para participação na CPAC, algo que em si seria de menor importância, mas que é tão simbólico quanto o evento e o discurso de Martins.

Para Olavo de Carvalho, a conquista política da direita aconteceu antes de se ter uma base cultural mais sólida

Enfim, o que resultará disso o tempo mostrará, mas espero que as lideranças desse processo tenham consciência de que esse risco não é nada desprezível; pelo contrário, as chances disso acontecer me parecem maiores do que de evitá-lo. Pela simples razão de que Olavo de Carvalho costuma ter razão. Seu texto acima sobre espírito e cultura foi escrito em 1999 e, além da descrição desse processo de nascimento, desenvolvimento e degradação de uma cultura, também fez uma análise da situação brasileira à época, considerando nossa base cultural como “nula”. Algo mudou de lá pra cá? Muito pouco.

Quem acompanha o filósofo pelas redes sociais sabe perfeitamente que sua análise da situação atual é a de que, no seu entender, a conquista política da direita aconteceu antes de se ter uma base cultural mais sólida. Nem sequer uma militância organizada foi de fato formada para dar suporte ao governo. O discurso de Martins é prova disso, aliás, o que significa dizer que, ao convocar para a atuação em ambas as frentes, político-eleitoral e cultural, acaba por considerá-las, na prática, uma só coisa.

Por isso, parece mais atual do que nunca o alerta do filósofo ao fim daquele texto de 20 anos atrás, que aliás foi escrito como meditação de ano novo: “Toda aspiração nacional de tornar-se 'grande potência' com uma base cultural tão nula está condenada, de antemão, seja ao fracasso, seja a um sucesso que se tornará, caso alcançado, um flagelo para a humanidade, obrigada a curvar-se ante a força bruta de novos bárbaros que nem sequer têm um senso próprio de orientação na História onde interferem cegamente”.

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