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Francisco Escorsim

Francisco Escorsim

Greta e The Boys no mundo da mentira

Greta Thunberg durante protesto em Washington, USA em 13 de setembro de 2019. (Foto: Nicholas Kamm/AFP)

Não sei você, desmodelado leitor, mas se eu transformasse qualquer – eu disse qualquer – adolescente como modelo do que quer que seja, isso nada diria sobre o piá ou a guria, mas o suficiente sobre mim.

Portanto, o que podemos dizer do beautiful people da mídia mundial que transformou em heroína planetária uma menina autista de 16 anos que aos 11 sofreu de depressão e logo depois foi diagnosticada também com transtorno obsessivo-compulsivo e mutismo seletivo, porque num dia qualquer de aula resolveu fazer, supostamente sozinha, uma greve escolar pelo clima, segurando um cartaz na frente do parlamento sueco posando para fotografias profissionais?

Digamos o mínimo do óbvio: quem não tem cão nem gato caça com alevino fantasiado de peixinho dourado. Nada contra ou a favor da menina Greta Thunberg, mas tudo contra quem a está usando descaradamente, seja para o que for. O que me espanta, na verdade, é que engodos assim funcionem. Minto, não me espanta mais, não, apenas cansa. Porque faz muito tempo vivemos num contexto de absoluta ausência de verdadeiros modelos, de heróis reais, daí porque muitos comprem a mera aparência de algo assim.

Não por outra razão um dos seriados mais assistidos das últimas semanas seja The Boys, produção original da Amazon Prime, retratando justamente essa realidade através de um grupo de super-heróis que não são heróis de jeito nenhum, mas assim parecem aos olhos do povão modelados pela propaganda e marketing. Esqueça os típicos super-heróis dos quadrinhos cujo drama na vida pode ser resumido no lema do tio do Homem-Aranha: “com grandes poderes vêm grandes responsabilidades”.

Nada contra ou a favor da menina Greta Thunberg, mas tudo contra quem a está usando descaradamente, seja para o que for

O Homem-Aranha, aliás, é um super-herói adolescente retratado exatamente como é todo adolescente, tendo tudo para aprender e quase nada a ensinar. O contrário do que tentam fazer parecer com Greta, ora pois. Em The Boys os grandes poderes lá estão sem que nenhuma responsabilidade seja necessária ou assumida. “Super-heróis” fabricados em laboratório, geridos por uma grande corporação como se fossem celebridades, com intensa preocupação com suas imagens e mais nada.

Tudo é uma grande mentira em The Boys, não apenas os heróis. Há até um super-herói supostamente cristão realizando grandes eventos artísticos e com retiros supostamente espirituais no melhor estilo “coach de vida”, mas com tudo sendo fake, fabricado, manipulado e, por isso, desesperador, inclusive para os próprios heróis que posavam de heróis. Eles só sabiam viver a vida “aproveitando” cada segundo de fama, dinheiro e prazer, o que sempre termina em tédio e solidão e daí passando a lutar para não enlouquecer ou se suicidar.

Apenas dois personagens despertam para a verdade e por isso se veem sem pai, nem mãe, sem modelos, sem orientação, sem saber o que fazer. É o caso de Hughie, sujeito comum que viu sua namorada ser morta sem querer por um super-herói chapado e que acabou tomando por modelo um sujeito movido unicamente pelo desejo de vingança. O outro é a superpoderosa Starlight, que durante a temporada descobre a verdade sobre a origem fabricada de seus poderes e quem eram por trás das câmeras os grandes heróis que lhe inspiravam até então.

Ambos passaram por dois momentos decisivos, quando o rumo que estavam prestes a tomar na vida faria com que se tornassem tão maus quanto os demais, mas na hora “h” pararam, recuaram, optando por tentar ser bons ainda que fosse inútil, impossível ou algo sem sentido e perspectiva. Refiro-me a quando Starlight foi ajudada por outra heroína que, percebendo o processo interior de degradação da menina, interveio a tempo para mostrar que sabia o que estava se passando com ela e que por isso sabia que não valia a pena o caminho que estava tomando, pois tinha sido o dela no passado e que a deixou como estava no presente: vazia, amarga, infeliz e culpada. Ainda bem, foi o suficiente para fazer Starlight tentar ser alguém melhor do que parecia possível naquelas circunstâncias. Já Hughie encontrou dentro de si um limite para o que faria por vingança, dizendo um basta e indo arriscar sua vida para tentar ajudar seus companheiros presos, enquanto Butcher, seu modelo até então, seguiu na sua sanha vingativa desmedida.

Não sei como os personagens serão desenvolvidos nas próximas temporadas, se se tornarão verdadeiros heróis a combater os pseudo-heróis, mas temo que tudo será como um voo de Ícaro, pois tentar amadurecer e se tornar uma boa pessoa sem bons exemplos disso é como navegar à noite em meio a uma tempestade sem ter bússola ou farol. E por isso a série é um ótimo retrato do tempo em que vivemos, mostrando que a “saída” para essa tempestade só pode acontecer através dos antiexemplos e do encontro de uma bondade interior com força suficiente para dizer “não” ou “chega”.

Depois disso, aí sim será possível dar às costas ao teatro mundial ecoado pela mídia e nas redes sociais, voltando-se a procurar na história e na cultura os grandes modelos, os verdadeiros heróis que por serem quem foram (e são), tornam-se de fato faróis e bússolas morais. Deixo uma dica, não tão distante e que pode agradar à conservadores gregos e progressistas troianos ou vice-versa. Refiro-me ao romance O Sol É Para Todos, de Harper Lee, de leitura fácil e trama simples, servindo de bom começo para uma formação da personalidade, pois retrata muito bem como um bom exemplo inspira e acaba formando o caráter de um adolescente.

No livro, Atticus Finch é o pai da criança narradora, Scout, e seu irmão pouco mais velho, Jem, que vai entrando na adolescência. Pelos olhos de Scout testemunhamos como o exemplo de Atticus vai formando o caráter de Jem. Exemplo de vida, de postura, com pouquíssimo discurso que, quando necessário, apenas esclarece a atitude já realizada, como quando Atticus falou sobre coragem depois de ter sido corajoso e feito Jem passar por situação semelhante: “Coragem é fazer uma coisa mesmo estando derrotado antes de começar. E mesmo assim ir até o fim, apesar de tudo. Você raramente vai vencer, mas às vezes vai conseguir.” É exatamente o que os personagens Hughie e Starlight, de The Boys, acabaram fazendo também, começando a se tornar, portanto, exemplos para outros, especialmente os telespectadores. Provavelmente será insuficiente para vencer, mas talvez não para nos ensinar a não nos deixar mais enganar por falsos heróis.

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