Virgem do Sorriso, escultura de Edme Bouchardon.| Foto: Divulgação
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Já faz alguns anos que na Quaresma tento fazer do trabalho uma forma de oração e penitência. Escolho um livro pertinente ao período e medito sobre a leitura um pouco a cada dia.

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Teve anos que compartilhei essas meditações em meus perfis de rede social, em outros partilhei apenas um resumo delas aqui em minhas colunas para a Gazeta do Povo, como no ano passado, com O Livro da Vida, de Santa Teresa D’ávila.

Este ano farei novamente. Lerei História de Uma Alma, de Santa Teresinha. Como penitência, já tenho e continuarei a postar as meditações diárias nos meus stories do Instagram. É penitência porque, primeiro, eu odeio stories. Segundo, porque fazer isso em público é bem incômodo, seja pela vaidade que vem à luz, seja pela verdade que preferia esconder.

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Hoje, começo com o primeiro capítulo da obra. Mas, antes disso, repito o que fez Santa Teresinha: “Antes de pegar na pena, ajoelhei-me aos pés daquela imagem de Maria que tantas provas nos deu das maternais predileções da Rainha do Céu, suplicando-lhe que me guiasse a mão para não traçar uma só linha que não fosse a contento seu”.

Fui atrás dessa imagem, que mal me lembrava (se é que um dia dei real atenção), da Virgem do Sorriso, como Teresinha chamava Nossa Senhora das Vitórias, esculpida por Bouchardon.

Os lábios delicados mais sugerem um sorriso em formação do que um “pleno”. Talvez por isso funcione para fazer sorrir quem o contempla, como se a parte faltante coubesse a quem vê. Sabe aquele sorriso de mãe que vendo o filho vencendo algum obstáculo ou conquistando algo na vida (um conseguir andar sozinho, por exemplo) já sorri com os olhos contendo a euforia para não distrair a criança? É o que me vem contemplando essa imagem.

Pensando aqui, é o que acontece quando leio escritos de Santa Teresinha. É como dar atenção a uma criança feliz que, por isso mesmo, contagia de sorrisos e alegria. Não que ela não tenha passado por sofrimentos na vida. Passou, vários e pesados, mas, ainda assim, a primeira impressão, e aquela que fica, é essa de uma criança feliz a brincar despreocupada porque confia plenamente na segurança dada pelos pais.

Se você já se permitiu acompanhar uma criança assim, um bebê qualquer, sabe que o tempo parece irrelevante, assim como a brincadeira ou o gracejo da criança. É a paz e alegria dela que importa, que contagia. Mas se isso não encontra um coração aberto ou ao menos disposto a se deixar alegrar, então o inverso periga acontecer: despertar inveja (ai! que ‘saudade’ de quando eu era assim e não tinha tantas preocupações e responsabilidades…) ou tédio…

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Pensando aqui, é o que acontece quando leio escritos de Santa Teresinha. É como dar atenção a uma criança feliz que, por isso mesmo, contagia de sorrisos e alegria

Santa Teresinha tinha perfeita consciência desse efeito na leitura da história de sua alma: “passo, agora, a pormenorizar a minha vida de criança, esperando que o seu coração maternal ache encantos naquilo que para qualquer outra pessoa seria narração tediosa.”

Já li a História de uma Alma algumas vezes. Em todas, sempre surgiu em algum momento um tédio imenso, um fastio, porque a narrativa parece que não sai “disso”, dessa “banalidade”. Na primeira vez concluí: “esta santa não é para mim”. Nas outras, um pouquinho menos estúpido espiritualmente, comecei a fazer da leitura um “termômetro” do meu orgulho. Sempre saio humilhado.

A “pequenez” de Santa Teresinha escandaliza. Quando ela fala, já no começo, antes de narrar sua história, sobre os privilegiados de Deus, colocando-se como uma sua florzinha num jardim recheado de outras tantas mais belas e grandiosas, imediatamente algo dentro de nós se insurge: “Mas você é das maiores e mais belas!”

Mas é assim quando lemos os santos. Quando lemos os próprios contando suas histórias não há um que não pareça, aos olhos dos orgulhosos, um “falso humilde”. Confundimos a santidade declarada pela Igreja, posterior à morte, com “grandeza” em vida. E grandeza há, mas não deles. É a de Deus.

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Teresinha, desde o início insiste que não vai contar sua história, mas cantar “as Misericórdias do Senhor!...”: “Não encontrará, pois, nestas páginas, a minha vida propriamente dita, mas os pensamentos que me ocorrem acerca das graças que Nosso Senhor se dignou conceder-me.

“Mas os pensamentos que me ocorrem…” Acho que é assim que devo ler este livro, anotando os pensamentos que me ocorrem, alguns me levando à meditações, outros, se Deus quiser, a contemplações maiores.

Deste primeiro capítulo, é preciso destacar uma lembrança em particular, que Teresinha disse ser “um resumo de toda a minha vida”. Trata-se do episódio em que uma das irmãs trouxe suas bonecas e deu às mais novas dizendo para escolherem. E ela, observando outra irmã pegar apenas um novelo de fita, disse: “Eu escolho tudo! E sem mais cerimônia agarro no cesto, levando boneca e tudo.”

Eis um dos momentos que mais me faz sorrir na leitura. E ficar a pensar nisso, no quanto ela escolheu também ser santa por inteira, ter todo Jesus para si, faz compreender melhor algumas passagens dos Evangelhos, como a de Marta e Maria, com Maria tendo escolhido a melhor parte, que era ficar aos pés de Jesus, banhando seus cabelos com perfume. Ou da cena do discípulo preferido aninhado no colo de Jesus na última ceia.

São cenas que ilustram o versículo famoso: “Muitos são chamados, poucos os escolhidos”. Mas talvez essa escolha não seja pessoal, por este ou aquele indivíduo, mas por todos aqueles que, sendo chamados iguais, deixam-se escolher por inteiro, como Teresinha. O jovem rico que queria ser perfeito saiu entristecido quando Jesus lhe disse para vender tudo e lhe seguir. Foi chamado, não foi escolhido. Porque não se deixou escolher. Os escolhidos, tenho para mim, são aqueles que se deixaram escolher em tudo e por tudo. É Jesus quem nos diz: “Escolho tudo!”. Somos nós quem não nos entregamos por inteiro.

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