“Perdi tempo demais com política”, desabafou Paulo Francis no início dos anos 1990. Ainda assim, até sua morte, em 4 de fevereiro de 1997, Francis jamais deixou de dar seus pitacos e fazer suas análises e denúncias políticas. Mas era nítido que o que mais gostava de fazer era escrever e falar sobre cultura. E nessa década de 1990, muitos só tinham nele o que um de seus “discípulos”, Daniel Piza, bem apontou: uma “janela” para o mundo. Eram dicas de leitura, filmes, peças de teatro, óperas, exposições, artistas, pensadores, que, se não fosse por Francis citar, ninguém no Brasil ficaria conhecendo. Lembremos que a internet só começou a engatinhar mesmo quando Francis estava já no fim de sua vida.
O legado de Francis para a cultura brasileira ainda está por merecer estudo e análise mais profunda. Depois de sua morte, dois “discípulos” ocuparam o espaço vazio deixado por ele: o já citado Daniel Piza e Diogo Mainardi. Piza tinha 27 anos quando Francis morreu; Mainardi, 35. O legado de polemista político ficou para Diogo, que dispensa apresentações. Iniciou sua coluna famosa na Veja em 1999, falando sobre cultura, mas, com a chegada de Lula ao poder, em 2002, praticamente só passou a falar sobre política. E continua assim até hoje. Também pelo fato de ter substituído Paulo Francis no programa de tevê Manhattan Connection, acabou sendo mais identificado como seu substituto em tudo o mais. Mas não foi.
Com a internet, o papel de “janela” para o mundo começava a se modificar radicalmente, mas não o daquele que seleciona o que é bom no mundo cultural. Daniel Piza ocupou esse vazio deixado por Francis. Quando este morreu, Piza era editor do “Caderno Fim de Semana”, da Gazeta Mercantil. Fez uma homenagem emocionada a Francis dias depois da morte, que levou um jovem de 23 anos à época a lhe enviar um fax (googlem, jovens) dizendo:
“Daniel, eu queria, nesta hora, poder com você falar mais sobre este homem retumbante e todo o seu legado inestimável. Quais são os seus projetos com relação a ele? Existe a possibilidade de lançar mais um Dicionário da Corte? Ou você pretende seguir com compilações à maneira de Ruy Castro (com relação à não menos importante obra jornalística de Nélson Rodrigues)? Tenho enorme interesse pelo trabalho de Francis “pré-Diário da Corte“. Você me aconselharia alguma coisa em especial? Existem sebos onde eu possa adquirir exemplares das publicações que você citou? Obrigado desde já por qualquer esclarecimento e também pelo tempo dedicado à leitura desta carta — que, espero, seja a primeira de muitas.”
Este jovem chama-se Julio Daio Borges e foi surpreendido ao receber um e-mail de Piza lhe respondendo. Foi, de fato, a primeira conversa entre ambos. Daniel foi se tornando, para Julio e outros amigos, uma “ponte entre aquele nosso mundo de recém-formados e o olimpo do jornalismo cultural, de Paulo Francis, Ivan Lessa, Millôr Fernandes…”. Mais do que isso, foi involuntariamente quem aproximou Julio de outras pessoas que não se conheciam entre si, mas eram leitoras de Piza à época. Segundo me relatou Eduardo Andrade de Carvalho, quando Piza deixou a Gazeta Mercantil, em 2000, enviou um e-mail a todos os seus contatos para avisar do fato, mas acabou deixando os destinatários visíveis. Julio aproveitou a deixa e incluiu todos eles em uma newsletter que ele mantinha chamada Digestivo Cultural, “um punhado de notas sobre assuntos culturais. Uma maneira de palpitar sobre ‘a cena’ sem precisar ser ‘da área’”, como ele mesmo disse em uma entrevista dada em 2013.
Voltando ao ano da morte de Paulo Francis, em dezembro de 1997, Julio escreveu uma crítica à Politécnica da USP, intitulada “A Poli como Ela é…“, que repercutiu para além da universidade, sendo citada na coluna que o jornalista Luís Nassif mantinha na Folha de São Paulo. A partir dali, Julio começou uma atividade de envio de breves notas culturais por e-mail, depois virando a newsletter citada que veio a se tornar, em 2001, o site Digestivo Cultural. Quer experimentar como era a internet no início dos anos 2000? Pois é só visitar este site, ainda mantendo o mesmo template original, com poucas alterações.
Só por isso, só por permanecer no ar e ativo há 17 anos, já merece atenção cuidadosa e estudo. E até que existe. Fuçando pela internet, encontrei um artigo intitulado “Jornalismo Cultural na internet: uma visão multidiscplinar sobre o site ‘Digestivo Cultural’”, de autoria de Rosiel do Nascimento Mendonça e Luiza Elayne Azevedo, síntese do seu trabalho de conclusão de curso junto ao Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Amazonas (Ufam). Não encontrei mais que isso, mas já é alguma coisa. Mas não é preciso maior análise para se constatar a razão da longevidade do site. É apenas uma: o fato de seu criador, Julio Daio Borges, jamais ter desistido e sempre mantido o comando do projeto.
Mas é claro que não estava sozinho. Desde o início havia vários colunistas, como o próprio Eduardo, e foi no Digestivo que começaram a publicar nomes como os wunderbloggers Alexandre Soares Silva e Fabio Danesi Rossi (hoje roteiristas da HBO), o jornalista e escritor Paulo Polzonoff e Bruno Garschagen, atualmente também colunista nesta Gazeta do Povo e autor do best-seller Pare de Acreditar no Governo, que será resenhado nesta série de artigos. De lá para cá, já passaram inúmeros colunistas pelo site, mantendo sempre a mesma característica de não serem “da área”, ou seja, não passaram pela porteira (bem) estreita dos órgãos de imprensa ou do meio editorial, nem ficaram engessados pela ansiedade do que seria ou não noticiável. Resultado: enquanto as revistas e cadernos culturais foram definhando até desaparecer, o Digestivo permaneceu vivo e crescendo. Como bem apontou Wellington Machado, em artigo no site em 2010:
“Muito antes de se levantar a questão da exigência (ou não) do diploma de jornalismo como pré-requisito para escrever na imprensa, o Digestivo já antecipava a tendência ‘liberal’, permitindo a qualquer pessoa, de qualquer profissão, fazer jornalismo cultural de maneira autodidata ou intuitiva ― como acontecia antigamente; haja vista os exemplos de Otto Maria Carpeaux, Paulo Francis, Nelson Rodrigues e do próprio Sérgio Augusto, que aprenderam o ofício na prática.”
A referência ao jornalista e escritor Sergio Augusto é importante aqui, pois foi um dos grandes nomes do jornalismo cultural a apoiar o Digestivo desde os primeiros momentos, como em entrevista à Carta Capital, em 2002, ao citar o Digestivo como boa referência de jornalismo cultural e, depois, se tornar ele próprio colaborador do site, chegando a escrever em seu livro As penas do ofício: ensaios de jornalismo cultural que participar do Digestivo “possibilitou ampliar seu espectro de leitores” e “aumentou sua taxa de retorno (vulgo feedback)”. Também outro nome conhecido do jornalismo cultural, Ruy Castro, contribuiu com um ensaio para o Digestivo, sem esquecer que Millôr Fernandes incentivou o site já no seu primeiro ano, em 2001, encaminhando um e-mail.
A citação a Sergio Augusto (e também a Ruy Castro) importa aqui porque o momento cultural atual em que vivemos transformou algo banal em algo maior, um exemplo a ser lembrado, divulgado e imitado. Porque Sergio é um homem de esquerda e jamais aceitou que Paulo Francis, que o tinha levado a escrever no Pasquim na década de 1970, tivesse virado a casaca e se tornado de direita. Ainda assim, jamais deixou de ler e respeitar os escritos culturais de Francis e a própria abertura, apoio e colaboração com jovens como Julio Daio Borges, que sempre disse que Paulo Francis está, para ele, “na origem de tudo”, demonstrando que culturalmente ser de esquerda ou de direita não pode ser o fator decisivo, mas nem de longe. O próprio site Digestivo Cultural não cabe nessas definições. Faz tanto sentido considerar o site “de direita” quando “de esquerda”, ou seja, não faz sentido algum. Por ali passaram colaboradores de direita e de esquerda, e isso nunca foi o mais importante.
Mas se, por isso mesmo, você está se perguntando da razão para se falar do Digestivo Cultural como integrando uma história da “nova direita”, então é porque para você essa dimensão cultural foi totalmente engolida pela ideológica, sendo que tudo o que interessaria seria o combate ideológico e mais nada. Infelizmente, para muitos é inconcebível que um site cultural como o Digestivo ou um grande jornal, como esta Gazeta do Povo, mantenha entre seus colunistas e colaboradores profissionais de ideologias opostas, independentemente da sua posição institucional. Não percebem que quem possibilitou o surgimento da própria “nova direita” é justamente quem combateu e combate essa uniformidade. No fundo, querem trocar uma “hegemonia cultural” por outra.
Enfim, a “nova direita” perde tempo demais com a política e muito pouco com a cultura, daí porque nem conhece sua história mais próxima. Deviam ler mais Paulo Francis, que aliás profetizou: “A era da sociedade de informação resultou no seu preciso oposto. A babel, o desentendimento completo, radical, incurável”.