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Viver no Brasil, hoje em dia, é como passar o dia e noite sentado na poltrona do meio, entre a janela e o corredor, sem ter assento reclinável, na última fileira do avião, ao lado do banheiro, se perguntando qual a regra para o uso dos braços que separam as poltronas, já que os da direita e esquerda estão sendo usados pelos dois outros passageiros.
Cheguei a essa conclusão dirigindo meu carro, voltando para casa do aeroporto, depois de alguns voos um tanto longos em que sentei… adivinha? No último trecho, enquanto aguardava o embarque finalizar, lia O Ato Criativo: uma forma de ser, de Rick Rubin. Talvez escreva sobre o livro, aliás. Estava ainda nos primeiros capítulos, o autor falando sobre a fonte da criatividade, quando o passageiro da minha esquerda chegou.
Eu estava tão concentrado na leitura que só me dei conta quando seu braço roçou no meu, que descansava no apoio entre nossas poltronas. A sensação do toque foi estranha, mais suave do que contato de pele, como se fosse de algum mosquito, algo assim. Instintivamente tirei o braço, com o canto do olho descobrindo uma profusão de pelos entre a cor ruiva e marrom. Eram tantos que Tony Ramos pareceria modelo de depilação à brasileira se ficasse perto.
Acho que Laerte está longe de ser como esses radicais progressistas ultrassensíveis a qualquer “a” dito diferente da sua visão de mundo, considerando isso um crime inafiançável sem direito de defesa ou perdão
Neste intervalo de menos de dois segundos, também notei que usava uma saia. Fiquei apreensivo, vai que era a Laerte? Até torci que fosse, pois creio que seria um bom papo. Mas a torcida não durou um nanossegundo, vencida pelo temor de que toda e qualquer coisa que eu falasse pudesse ser tomada como ofensiva. Quem há de saber o que não é ofensivo hoje em dia?
Acho, no entanto, que Laerte está longe de ser como esses radicais progressistas ultrassensíveis a qualquer “a” dito diferente da sua visão de mundo, considerando isso um crime inafiançável sem direito de defesa ou perdão. Se fosse, jamais faria tirinhas como as que fez sobre sua transição de gênero. Em uma delas, está em uma clínica de urologia, de vestido, sentada na sala de espera com outros pacientes, lendo uma revista. Todos a observam de canto de olho. Então, diz: “É, gente, por baixo desse tubinho pulsa uma próstata igual a de vocês”.
Ainda assim, achei melhor ficar quieto. Se eu ainda fosse amigo dos ministros do rei, vá lá, mas sendo provavelmente o oposto disso, é mais provável que afastar o braço por instinto já seria considerado um ato antidemocrático punido com 17 anos de prisão.
Tentei retomar a leitura, evitando qualquer contato visual, muito menos braçal. Mas não conseguia mais me concentrar: “e se for a Laerte?” E as memórias da leitura das revistas Chiclete com Banana e Geraldão, nos anos 1980; das tirinhas dos Piratas do Tietê, nos anos 1990, que lia nos jornais; e as do personagem “Deus”, lidas por aí no mundo virtual, saltavam em minha mente.
Gosto de uma tirinha de “Deus” em particular. Tem apenas um sujeito chamando por Ele, e, como não é respondido, vai empilhando escadas, subindo para ver se, chamando mais de cima, era escutado. No último quadrinho, Deus responde “Quê?”, do chão, olhando pro sujeito se equilibrando no alto. Quão “alto” estamos vivendo hoje em dia? Tomara que não seja tão distante do chão que torne aquele “quê?” inaudível.
Enfim, fui interrompido do meu ato de criação mental com o serviço de bordo distribuindo saúde, educação e segurança. Aceitei o copinho d’água e as bolinhas de vento, aproveitando a oportunidade para enfim confirmar se era Laerte ou não. Pois não é que não era?! Era uma mulher-pleonasmo, daquelas que nasceram mulher mesmo. Os supostos pelos do braço eram fiapos de um tecido que não sei o nome, da blusa que ela usava.
Fiquei triste, queria mesmo que fosse Laerte. Queria ter perguntado se acredita em Deus, ao menos naquele do abraço, que deve ser a tirinha mais famosa do seu Deus, quando uma mulher faz uma série de perguntas que Deus não sabe responder; para a última delas, “Se não posso contar com o poder da sua mão, com o que posso contar?”, Ele responde: “com o ombro”, terminando a tirinha com ambos abraçados.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos