No fim de julho de 2016, Leonard Cohen recebeu um e-mail de Jan Christian Mollestad, amigo íntimo de Marianne, sua eterna Musa, contando que ela estava à beira da morte, sofrendo de um câncer. Cohen também padecia da mesma doença e imediatamente respondeu: “Bem, Marianne, chegou o tempo em que estamos tão velhos e nossos corpos caindo aos pedaços e creio que lhe seguirei muito em breve. Saiba que estou tão perto que, se esticar sua mão, creio que encontrará a minha. E você sabe que sempre te amei por sua beleza e sabedoria, mas não preciso dizer mais nada porque você sabe tudo sobre isso. Mas, agora, quero apenas lhe desejar uma boa viagem. Adeus, velha amiga. Amor infinito, te vejo na estrada”.
Dois dias depois, chegou nova mensagem vinda da Noruega, onde Marianne morava: “Marianne dormiu lentamente para fora desta vida ontem à tarde. Totalmente em paz, cercada por seus amigos próximos. Sua mensagem chegou quando ela ainda podia falar e rir com plena consciência. Quando a leu, sorriu como só Marianne sabia sorrir. Ela ergueu sua mão, quando você disse que estava perto o suficiente para alcançá-la. Deu-lhe grande paz de espírito que você soubesse da sua condição. E sua bênção para a jornada lhe deu força extra... Na sua última hora segurei sua mão e murmurei Bird on the Wire, enquanto ela respirava tão levemente. E quando deixamos o quarto, depois de sua alma levitar pela janela para novas aventuras, beijamos sua cabeça e sussurramos suas palavras eternas: So long, Marianne...”
A história de Marianne e Leonard é bela, triste e depois mais bela ainda. Bela, como as músicas comprovam. Triste, como a história revela. E mais bela ainda pelo fim eternizando o amor
Além das famosas canções citadas na mensagem transcrita acima, Leonard Cohen também compôs para ela outra icônica: Hey, That’s No Way To Say Goodbye, onde canta: “Sim, muitos amaram antes de nós, eu sei que não somos uma novidade”. À época, talvez não fossem, mas, quase 60 anos depois e com este fim, se não se tornaram algo novo, certamente são raros. Leonard a seguiu mesmo, morrendo meses depois e a história desse relacionamento é contada no documentário Marianne & Leonard – Palavras de Amor, agora disponível na Netflix. Uma história bela, triste e depois mais bela ainda. Bela, como as músicas comprovam. Triste, como a história revela. E mais bela ainda pelo fim eternizando o amor.
Leonard e Marianne se conheceram na ilha de Hydra, na Grécia, quando ele era ainda apenas escritor, não o compositor famoso que se tornaria, muito graças à inspiração de Marianne, que não foi musa apenas dele, mas também de outros, como o próprio diretor do documentário que passou pela ilha na época. Todos viviam o auge da era do sexo livre e o documentário é didático para nos mostrar a realidade do “sexo, drogas & rock’n roll” que costuma se vender como uma espécie de vivência paradisíaca, mas que resulta em casamentos inviabilizados, famílias desfeitas, filhos com transtornos mentais (como o filho de Marianne), depressão generalizada, suicídios. Leonard praticamente vivia drogado, também sofrendo de depressão.
Embora se amassem, não conseguiram construir uma vida em comum e cada qual seguiu sua vida, casando-se com outras pessoas. Mas jamais deixaram de manter contato, mantendo-se bons amigos, algo somente possível quando ao amor se soma o perdão, que o completa. É justamente essa completude que vemos no fim do filme. Sempre que Leonard passava com suas turnês pela Noruega, onde Marianne voltou a viver depois de Hydra, enviava ingressos e ela costumava ir. No mais belo momento da obra, vemos Marianne na plateia do último show dele a que assistiu, cantando junto So Long Marianne. A cena fala por si, com a imensa beleza do final da vida de ambos comovendo o espectador pela plenitude do amor consumado nas mensagens finais transcritas acima.
Em uma entrevista à revista New Yorker, dada algumas semanas depois da morte de Marianne, e que não consta do documentário, o jornalista conta que Cohen não parecia muito devastado pela morte porque a memória do tempo que viveram tinha uma força maior, com Cohen dizendo: “Havia uma gardênia na minha mesa perfumando toda a sala, havia um pequeno sanduíche ao meio-dia. Doçura, doçura em todos os lugares”. Em seu último disco, I Want It Darker, lançado meses depois, várias músicas remetem a Marianne, ao tempo vivido e agora eternizado, não perdido, com a morte, como canta em Leaving The Table: “Eu sei que você pode sentir / A doçura sendo restaurada”.
O “sexo, drogas & rock’n roll” costuma se vender como uma espécie de vivência paradisíaca, mas resulta em casamentos inviabilizados, famílias desfeitas, filhos com transtornos mentais, depressão generalizada, suicídios
Trabalhou neste disco sofrendo da doença, que causava dores fortes em suas costas, pioradas porque os remédios para minorá-las lhe deram alergia. Muito magro, passava os dias sentado numa cadeira especial onde a dor aliviava por instantes. Ali compôs essas músicas, escreveu seus últimos poemas, gravou sua voz para o disco. Um típico disco de Cohen com aquela atmosfera de templo desabitado e vazio onde ele segue lutando com Deus, como Jacó contra o anjo em sua tenda, ecoando sua voz profunda que, se antes cantava um alquebrado Hallelujah, agora suplica por um tratado de paz “entre Seu amor e o meu”, como canta na belíssima Treaty.
Em uma entrevista mais antiga, ao falar sobre sua vida na ilha grega de Hydra, Cohen disse: “Eu usava droga atrás de droga, sentado no meu terraço na Grécia, esperando para ver Deus”. Passou a vida procurando vê-Lo. Certa vez, chegou a dizer sobre sua busca espiritual: “Qualquer coisa, catolicismo romano, budismo, LSD, estou para qualquer coisa que funcione”. A aposta maior foi no zen-budismo, nos períodos em que ficava num mosteiro perto de Los Angeles, onde nos anos 90 passou sete anos morando como um monge. Em I Want It Darker as referências a Cristo, porém, são maiores e mais constantes do que qualquer outra figura religiosa ou espiritual e na música que dá título ao disco, afirma: “Estou pronto, meu Senhor”.
Há toda uma temática de rendição no disco, mas não de conversão. Tanto que a última música é uma reprise orquestrada (divina, aliás) de Treaty, na qual sua voz só entra no fim, acrescentando uma estrofe a mais, voltando a suplicar por um tratado de paz entre o amor Dele e o seu. E, de fato, ele conseguiu essa paz. Depois de sua morte, o repórter disponibilizou a gravação em áudio da entrevista e no trecho final, que não foi publicado na revista, Cohen contou que escutava a voz de Deus, que agora era diferente, não uma voz de julgamento que imaginava quando criança: “Às vezes eu O escuto dizendo ‘Me ignore, apenas siga com as coisas que tem de fazer’. É muita, é muita compaixão, como nunca senti em nenhum momento da minha vida. Eu não tenho aquela voz que diz ‘Você está fora!’. Isso é uma bênção tremenda, uma bênção tremenda! Sério. As coisas espirituais se encaixaram nos seus devidos lugares, pelo que sou profundamente grato”.
Na sequência, ele disse que procurava “acertar as contas” antes de morrer, deixar tudo acertado, colocando os pontos finais no que precisava colocar. Um deles foi com Marianne, com sua mensagem. Também com Deus, como se vê. Por fim, o adeus aos seus poemas e músicas. Uma de suas mais famosas é Tower Of Song, na qual canta: “Agora me despeço de vocês, não sei quando voltarei / Amanhã nos moverão para aquela torre abaixo da trilha / Mas você continuará me ouvindo, baby, muito depois de eu ter ido / Estarei falando com você docemente de uma janela / Na Torre da Canção”. E o que estaria falando? Para mim, são os versos que não teve tempo de musicar, permanecendo como um poema que declamou em várias de suas últimas entrevistas e você pode escutá-lo no vídeo linkado acima. So long, Mr. Cohen, e muito obrigado por isso e por muito mais que seguirei escutando como quem procura escutá-Lo:
Ouça o colibri
Cujas asas você não pode ver
Ouça o colibri
Não escute a mim
Ouça a mente de Deus
Que não precisa ser
Ouça a mente de Deus
Não escute a mim
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