“Após quatro dias de coma, meu estado era tal que só o Senhor pode saber os intoleráveis tormentos que sentia em mim: a língua, feita em pedaços de tantas mordidas; por não ter ingerido nada, e também por estar eu tão fraca; a garganta sufocava-me, de maneira que nem água eu conseguia engolir; meus ossos pareciam estar todos desconjuntados, e em minha cabeça reinava uma terrível confusão. Como resultado dos tormentos daqueles dias, eu estava encolhida como um novelo, tão incapaz de mexer braço, pé, mão ou cabeça quanto se estivesse morta, a não ser que alguém os mexesse por mim. Pelo que me recordo, só conseguia mover um dedo de minha mão direita. Não havia como permitir que viessem visitar-me, porque meu estado era de tal modo lastimável que eu não o podia suportar. Moviam-me com a ajuda de um lençol: uma pessoa de cada lado, cada uma segurando duas pontas. Isso foi até à Páscoa”.
Quando lia este trecho do Livro da Vida, de Santa Teresa D’Ávila, veio a mensagem de que um amigo das antigas, internado há semanas por causa da Covid-19, não resistiu. Foi inevitável não associar os sofrimentos; afinal, quem aí não se tornou PhD em sintomas evolutivos da nova doença e na dor temida de simplesmente tentar respirar entubado mantido de bruços?
O sofrimento torturante da ainda não santa durou anos, dele tirando um grande bem: a oração. Era só o que conseguia fazer. Você reza, leitor? Mas rezar rezado. Pois eu, nesta pandemia, até que comecei bem, mas fui cansando. As preocupações se avolumavam, a ansiedade crescia, tornando difícil conseguir o recolhimento necessário para que a oração realmente acontecesse, não apenas um solilóquio ou repetição de palavras sem qualquer presença real minha as recitando. E aos poucos o tempo de oração foi diminuindo, rareando, até que dela também me cansei. E foi nesse cansaço que comecei a Quaresma.
Você reza, leitor? Mas rezar rezado. Pois eu, nesta pandemia, até que comecei bem, mas fui cansando
Talvez este sentimento seja comum entre os católicos hoje, essa sensação de que nunca saímos da Quaresma de 2020. E mais cansado me senti no dia seguinte, quando quis passar numa igreja antes do trabalho. Estava fechada. Minha revolta com essas coisas ficou pelo meio do ano passado, e agora percebo que até a tristeza já se tornou tão rotineira que não vejo anormalidade nessa barbaridade, como nas mortes em sucessão na pandemia. Vai em tudo um cansaço imenso. É como um inverno que, ao se despedir, não nos entregou à primavera, mas a novo outono, com as folhas que mal nasceram já caindo mortas.
Em anos anteriores, nesta época da Quaresma, fiz do meu espaço aqui um instrumento de penitência e oração, para me ajudar a melhor vivê-la. Primeiro foi com as Confissões, de Santo Agostinho. Ano passado, com A Montanha dos Sete Patamares, de Thomas Merton. Este ano a disposição é quase nenhuma, mas talvez sem isso, nem isso. Resolvi dar uma chance a Santa Teresa, relendo este seu Livro da Vida. E me surpreendi, não lembrava que a doença foi causa de ela ter cessado de rezar durante um tempo. Mais surpreendido ainda fiquei quando ela disse: “Com um pouco de cuidado, podemos conquistar grandes bênçãos nos momentos em que, enviando-nos trabalhos, aflições, sofrimentos, o Senhor nos priva de nossas horas de oração, e eu mesma pude ter experiência disso quando tinha boa consciência”.
Da boa consciência devo estar longe, mas nem tanto a ponto de não querer essas bênçãos também. E uma coisa ficou ressoando em mim desse trecho: “Com um pouco de cuidado”. Mais especificamente este “pouco”, a que fiquei meditando repassando o cansaço das coisas que torna o pouco em muito. Meditando na aridez espiritual, enfim, e como o “pouco” talvez seja o pouco de oração que se consiga fazer quando “a vontade não encontra onde possa ser aplicada e o amor não tem um objeto com o qual se ocupe”, como disse a santa, concluindo que “fica a alma como sem suporte ou exercício, sua solidão e aridez provocam-lhe um grande sofrimento e seus pensamentos a lançam num terrível combate”.
Este trecho está na parte em que a santa conta que, no início de sua caminhada espiritual, não conseguia rezar, meditar, sem o auxílio de uma leitura: “Em todos esses anos, a não ser depois de comungar, jamais ousei começar uma oração sem um livro diante de mim. Sem ele, minha alma experimentava um medo de rezar tão grande como se tivesse de enfrentar sozinha uma multidão de inimigos. Com essa ajuda – que me serviam de companhia ou como um escudo com o qual eu podia aparar os golpes de tantos pensamentos – eu me sentia consolada”.
É o que espero que o Livro da Vida faça por mim. Aliás, já está fazendo. O que me fez perceber que, neste cansaço pandêmico, soube me socorrer de auxílios consoladores também. Não houve escrito, nem outro trabalho, que desde o começo eu não tenha feito sem alguma música a me acompanhar ou servindo de escudo mesmo. Elas foram, são meus livros de oração. Fazem por mim exatamente o que aqueles livros fizeram pela santa àquela época: “Se me faltasse um livro, logo se me perturbava a alma e meus pensamentos punham-se a vagar sem rumos; assim que começava a ler, no entanto, esses pensamentos eram docemente recolhidos e a alma voltava a sua ordem original”.
A consolação para este primeiro texto sobre o Livro da Vida veio na belíssima interpretação de Eva Cassidy para Autumn Leaves. Aliás, vale assistir ao vídeo, que deixo linkado no fim, desta gravação feita ao vivo em 3 de janeiro de 1996. Logo depois, Eva foi diagnosticada com um câncer que a matou em pouco tempo, falecendo em novembro daquele mesmo ano. O que traz à sua performance um significado maior. É como se aquelas folhas de outono que mal nasceram tomassem a forma do dedilhar do violão, até caírem com as notas do piano, com a voz de Eva soando profundamente solitária, impressionantemente solitária, que é a aparência da oração em tempos de aridez. Que Deus a tenha, guarde com Ele também os que se foram desta vida e nos dê (ou devolva) a graça da oração.
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