A leitura de autobiografias de santos é sempre difícil. Há dois obstáculos aparentemente invencíveis que aparecem logo de cara e permanecem até a última página. O primeiro deles decorre de os santos sempre se apresentarem como sendo as piores pessoas do mundo, mas quando vemos os pecados arrolados, a desproporção é gritante.
Como no caso de Santa Teresa D’Ávila, que já no prefácio do seu Livro da Vida pede: “a quem venha a ler este discurso da minha vida, peço que, pelo amor de Deus, tenha diante dos olhos que fui muito ruim”. Mas aí a lista dos pecados começa e não vão muito além da leitura de livros de cavalaria (é pecado?) e cuidados com a aparência física (quem nunca?), com nada parecendo ser grave o suficiente para a considerarmos “muito ruim”, pelo contrário.
O segundo é a constante interrupção da narrativa para agradecer e louvar a Deus. OK, é compreensível e admirável, mas sejamos honestos: é uma chatice para o leitor comum. Ou vai me dizer que é algo bom ler uma obra cujos agradecimentos do autor não viessem antes ou depois do escrito, mas intercalados no corpo da obra, repetidos o tempo todo? Exemplo: “Queria agradecer minha esposa, meu editor, meus colegas Fulano e Siclano, sem quem jamais seria possível ter escrito”. Agora imagine isso sendo repetido em todos os capítulos, às vezes mais de uma vez. Por mais que você saltasse essas partes, a leitura fica toda “quebrada”, cansativa.
Os santos louvam e agradecem a Deus o tempo todo justamente porque sabem perfeitamente bem que, se não fosse Ele, não teriam a menor chance de deixar de serem “muito ruins”
O efeito disso para o leitor comum (não outro santo, que entende perfeitamente tudo isso) é uma dificuldade de se colocar no lugar do santo, exigindo um esforço imaginativo maior para não deixar que esse distanciamento incômodo, algo como um zumbido quando tentamos ficar quietos, em silêncio, acabe se tornando invencível e se desista da leitura.
Como superar esses obstáculos? Reconhecendo que são frutos da nossa soberba. É a soberba que, se seguirmos sendo honestos aqui, explica nos colocarmos na posição de juízes achando isso ou aquilo da gravidade dos pecados confessados pelos santos. É a soberba que nos cega para o efeito purgativo inescapável ao conhecermos suas vidas, pois se fôssemos humildes não ficaríamos achando que os santos são mimizentos fazendo tempestade em copo d’água, mas começaria a cair a ficha de que, se esses pecados são assim considerados pelos santos, quão “muito ruins” somos nós?
Mais ainda, se essas “pequenezas” são pecados, como não pecar? É simplesmente impossível. E aí começaríamos a ter chance de superar o segundo obstáculo, porque entenderíamos que os santos louvam e agradecem a Deus o tempo todo justamente porque sabem perfeitamente bem que, se não fosse Ele, não teriam a menor chance de deixar de serem “muito ruins”. Quando realmente entendemos isso, aqueles obstáculos se desmontam de imediato e a leitura já não tem como ser impune para o leitor: seguir lendo é se forçar a um profundo autoexame que só pode terminar em confissão e ação de graças. Exatamente o que é a autobiografia de um santo.
Significa dizer que a leitura tem de se transformar em oração. Aqueles obstáculos são as traves em nossos olhos que precisam ser retirados e, quando assim queremos e nos esforçamos, Deus recompensa. Segundo Santa Teresa, primeiro com uma ternura consoladora: “Parece que Sua Majestade paga aquele esforço irrisório que fizemos com a grande dádiva do consolo que a alma obtém ao ver que chora por tão grande Senhor. E não me espanto que ela encontre aí uma fonte de consolação. É legítimo que busque nisso sua alegria e seus deleites”.
Mas isso não acontece apenas quando nos esforçamos na leitura. Não. Aprendamos com a santa: “é bom ter em mãos um livro que as ajude a se recolherem. Também me favorecia olhar o campo, ou a água, ou as flores, enfim, todas as coisas que me faziam lembrar do Criador, que me despertavam, ajudavam-me a recolher-me e, assim, serviam-me como um livro, além de me fazer recordar de minha ingratidão e meus pecados. Porém, em coisas do Céu ou qualquer coisa sublime, meu entendimento era tão grosseiro que jamais pude imaginar, até que por outro modo o Senhor as tornou presentes para mim”.
Comigo, que sou de entendimento ainda mais grosseiro, é a música, como disse na coluna passada, que me ajuda a despertar e me recolher em oração, de onde escrevo neste instante escutando That’s Me Trying, letra de Nick Hornby, música de Ben Folds e gravada por este, Aimee Mann e William Shatner de forma magistral.
A letra é sobre um pai na velhice, interpretado por William Shatner, escrevendo à sua filha, que está na altura dos 40 anos, a quem abandonou há décadas, tentando retomar o contato e recuperar o tempo perdido. Prestando atenção apenas à letra, colocando-se no lugar da filha vendo que ele nem sequer lembra quando ela nasceu, que não sabe explicar por que perdeu sua formatura, seu casamento e não quer saber se tem netos, apenas deseja retomar o contato como se nada tivesse acontecido, é impossível aceitar, não se enfurecer, não se entristecer. É perda demais para se levar tão na boa como o pai gostaria e pede.
Entretanto, a música tem a forma da Misericórdia, com o refrão cantado em dueto por Ben Folds e Aimee Mann: “Anos de silêncio não foram suficientes, quem pode nos culpar por desistir? Acima do silêncio há um zumbido, sou eu tentando”. Gosto de interpretar que a pergunta é feita por pai e filha que fizeram as pazes, que reconhecem que os anos de silêncio não foram suficientes para exterminar o amor, quem pode culpá-los por desistirem de ficarem distantes? E aí a última frase é para mim dita por Deus, revelando que acima desse falso silêncio, do silêncio da morte por guardarmos num cofre trancado na alma nossas perdas, sofrimentos, culpas e ressentimentos, também para não vermos, nem nos incomodar com a multidão de pecados, veniais ou não, em que estamos afogados; acima desse falso silêncio, há sempre um zumbido, que só é zumbido porque o recusamos, mas que, ao lhe darmos a devida atenção, revela-se ser outra coisa, revela-se ser Ele tentando chamar nossa atenção para Si, para o Amor.
Rezar é se colocar na presença de Deus, dar-Lhe atenção. Ler uma autobiografia de santo é se predispor a tanto. E talvez nenhuma seja melhor para isso do que a de Santa Teresa D’Ávila, nossa professora de oração. Porque ninguém como ela conseguiu retratar tão bem psicologicamente o que é rezar, descrever o que se passa na alma quando nos voltamos para Deus à Sua procura. Ler suas obras, com boa vontade, é ser levado a este encontro, à presença de Deus, quando então descobrimos que aqueles obstáculos aparentemente invencíveis para a leitura são apenas parte daquele zumbido que, quando temos ouvidos para ouvir, não é um zumbido, mas uma voz nos dizendo: “Sou Eu tentando”.
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