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Francisco Escorsim

Francisco Escorsim

Livro da Vida (3)

Detalhe de gravura de Gustave Doré para o Purgatório, da Divina Comédia
Detalhe de gravura de Gustave Doré para o Purgatório, da Divina Comédia, mostrando os que se arrependeram apenas no fim da vida. (Foto: Reprodução)

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Todo católico sabe que, para ser salvo, basta se arrepender dos pecados, mesmo que este arrependimento se dê somente antes do último suspiro vivo. Ao que os não católicos costumam responder: “Mas aí é fácil! E, sendo assim, vou aproveitar a vida e quando estiver para morrer me arrependo e fica tudo certo!”

E fica mesmo, não estão errados. Deus é misericordioso assim. O que nem desconfiam é que essa alegria por se sentirem livres para pecar apenas revela uma brutal ignorância do que seja o Paraíso. Consideram a salvação uma “linha de chegada”, quando é só uma porta de entrada. Não fazem a menor ideia do que ganham se o arrependimento for feito aqui e agora, com a vida se tornando mais do que o gozo de prazeres buscados desesperadamente como fuga ou compensação pelas agruras que todos passamos neste vale de lágrimas.

Uma analogia tosca, que é o máximo que meu entendimento alcança, talvez ajude a enxergar o tamanho da estupidez dessa malandragem. Imagine um restaurante perfeito. Eu disse perfeito. Agora, imagine que você está lá almoçando, comendo a melhor refeição da sua vida, extasiado com os sabores, o ambiente, as companhias, a alegria inevitável, quando entra alguém correndo esbaforido, alguém que fugia da morte. A recepcionista o acolhe e você vê o recém-salvo estupefato: não sabia que havia mais depois daquela porta do que sua salvação.

A alegria dos não católicos por se sentirem livres para pecar e se arrepender apenas no último minuto revela uma brutal ignorância do que seja o Paraíso

Você o acompanha admirando o lugar, consultando o cardápio com seu olhar brilhando, maravilhado com tudo, desejando tudo, os aperitivos, as entradas, os pratos principais, secundários, sobremesas, bebidas de todo tipo, não tem o que não queira. Não demora e ele pede à recepcionista por uma mesa; ela gentilmente lhe nega, explicando não ser possível sem uma reserva. O máximo que pode fazer é permitir que ele permaneça na sala de espera pelo tempo que quiser, servindo-lhe uma taça de vinho oferecida de cortesia aos que ali aguardam. Ele aceita, alimentando-se de esperança, e no primeiro gole do vinho você lê na face dele o deslumbramento suspiroso, um arrependimento muito diferente de quem apenas se salva, mas aquele de quem se diz: “Ah, se eu soubesse...”

Dante, na sua Divina Comédia, coloca os arrependidos de última hora no que chama de Ante-Purgatório, mostrando que, embora salvos, para adentrar o Paraíso ainda terão uma íngreme montanha a ser escalada, na qual o fogo do Amor os purificará dos pecados não combatidos em vida. Esta subida pode começar já, aqui e agora. É o arrependimento que abre a porta para um caminho de perfeição por onde temos de caminhar, deixando-nos ser conduzidos pelo Amor, através da oração.

Não por acaso, conhecemos os frutos da oração tanto quanto os manjares ofertados no Paraíso. Por isso, muitos acham que rezar não seria mais do que repetir, sem nem precisar pensar, orações prontas, como o Pai Nosso e a Ave Maria. Coisa meritória, tanto quanto se arrepender no último suspiro, mas a oração é tão mais do que a repetição mecânica de palavras, mas tão mais que se torna difícil colocar em palavras algo de que só a experiência consegue dar conta. Tão difícil que até Santa Teresa D’Ávila, a maior professora de oração que já existiu, como falei na coluna passada, disse a respeito no seu Livro da Vida: “Apesar de todos os meus esforços para exprimir com clareza o que tenho a dizer sobre a oração, minha linguagem será bem obscura para quem não tiver experiência disso”.

E de fato é. Aos não iniciados ou principiantes na oração, é bem difícil discernir os quatro graus da oração de que ela fala, que é o coração do livro, quando interrompe a narrativa de sua vida para entregar um pequeno e sublime tratado de teologia mística. Nesta parte, aquele que não tem experiência disso muito aproveitará das lições se estudá-las com atenção, mas melhor aproveitará se antes se deixar apenas conduzir pela analogia da alma como um jardim sendo regado pela água do Amor através da oração. Ao fazer isso, o leitor terá a experiência da oração com a própria leitura, especialmente quando chegar ao terceiro grau, quando a santa está claramente imersa em oração e um leitor de coração aberto será banhado dessa água.

Deixo para falar dos quatro graus na semana que vem; hoje me contento com o que aprendi com a santa. Se muito não me engano, a primeira característica desta experiência, desta “entrada em oração”, é termos uma vivência temporal diferente. É como se fosse uma “saída” do tempo, uma suspensão dele, um “esquecimento” da vida. Sabe quando você lê algo que o impacta e não consegue mais parar de ler, ou quando assiste a um filme que lhe deslumbra e você não percebe o tempo passar, ou quando escuta uma música que cala tudo à sua volta e lhe faz mergulhar dentro de você, ficando distante de tudo e todos? São experiências de entrega, de não precisarmos nem querer nada além de simplesmente “ficarmos ali” diante do que nos tocou. Isso já é oração, acredite.

A oração se torna, então, como uma “resposta ao tempo”, como cantou Aldir Blanc, falecido no ano passado, vítima da Covid-19. Esta música ficou famosa na voz da Nana Caymmi, mas eu a prefiro na versão do compositor, que deixarei abaixo. Escutei muito esta canção no ano passado, tanto que o Spotify a colocou como a terceira que mais escutei no ano todo. Não teve vez em que, ao ouvi-la, eu não tenha entrado em oração, rezando com a letra:

E o tempo se rói
Com inveja de mim
Me vigia querendo aprender
Como eu morro de amor
Pra tentar reviver

E é isso, a oração é uma experiência amorosa decorrente de nos colocarmos de verdade na presença do Amor. Quando isso acontece, descobrimos que rezar é ser amado.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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