“A oração é a irmã trêmula do amor.” Queria começar este escrito com alguma definição de oração, do que é rezar. E pesquisando, lendo, encontrando várias, deparei-me com esta frase do escritor Victor Hugo que me deixou a pensar (ou seria já rezar?).
Para mim, faz muito sentido. Porque a oração é um encontro com Deus, logo, com o Amor. Há um movimento nosso de se colocar na Sua presença à espera de uma resposta Dele que, quando acontece, faz deste encontro uma experiência amorosa. Faz sentido vê-la, portanto, não como o amor, mas uma sua irmã.
Irmã trêmula mesmo, porque ao rezarmos não temos como determinar se e quando esse encontro de fato começa, nem quando termina, tampouco sabemos se voltará a acontecer em outro momento. Trememos porque não temos controle, nem garantias, apenas a fé que faz com que possamos chamá-Lo, suplicar por sua Graça.
Existem centenas de tratados sobre a oração, mas nenhum conseguiu descrever psicologicamente o que acontece durante a oração, em todas as suas etapas, como Santa Teresa fez em suas principais obras
E trêmula também em outro sentido, não do medo e da insegurança, mas de êxtase, de arrebatamento, quando esta experiência amorosa alcança seu grau máximo. Não confunda, porém, com os “shimbalaiês” de supostos êxtases coletivos “falando em línguas” de muitos cultos evangélicos ou encontros de oração de grupos carismáticos católicos. Não se trata aqui de catarse, mas de outra coisa muito diversa, que, se não fosse por Santa Teresa D’Ávila ter conseguido descrever como é este estado da alma, certamente não teríamos linguagem para expressar.
Existem centenas de tratados sobre a oração, dos mais filosóficos e teológicos aos mais práticos, mas nenhum conseguiu descrever psicologicamente o que acontece durante a oração, em todas as suas etapas, como Santa Teresa fez em suas principais obras: Livro da Vida, Caminho de Perfeição e Castelo Interior (ou Moradas). No primeiro deles, temos uma primeira divisão em quatro graus de oração, mas já contendo distinções internas em cada um que depois seriam melhor trabalhadas nas demais obras.
Santa Teresa não usa uma linguagem “técnica” para descrever a experiência da oração; pelo contrário, “usa do modo familiar de conversar na Castela de sua época”, como bem explicou Antonio Royo Marín. Não há, portanto, uma didática, de que principiantes costumam se queixar, mas uma exposição despojada, com idas e vindas entre a descrição e o que sente ou vive no momento da escrita, entremeadas com avisos ou pedidos aos seus confessores, àqueles que lhe pediram para escrever.
Ou seja, ler Santa Teresa é escutá-la falando. Quando o leitor faz esse pequeno esforço imaginativo, perceberá nuances de tons da voz que farão toda a diferença. Não só para o entendimento do que lê, mas para participar daquilo que a santa está falando. Sim, para rezar junto com ela. Por exemplo, quando trata dos graus mais avançados, do terceiro e do quarto, ela somente conseguiu escrever logo depois de comungar. Escreveu, portanto, comungando, inspirada pelo Espírito Santo: “O fato é que, quando comecei a escrever acerca desta última água, mais impossível me parecia dizer alguma coisa sobre ela do que falar em grego, tamanha era a dificuldade que sentia. Resolvi, então, deixar tudo e fui comungar. Bendito seja o Senhor, que tudo podes! Deus esclareceu meu entendimento, umas vezes com palavras, outras mostrando-me como o havia de dizer, pois, tal como fez na oração anterior, parece que Sua Majestade quer dizer o que não posso nem sei”.
A água a que se refere é parte de uma das metáforas que a santa usa para poder expressar suas experiências. Se no Castelo Interior a alma é como um castelo, no Livro da Vida é um jardim. Em ambos, temos de “entrar”. Para iniciantes, a metáfora do jardim me parece funcionar melhor, enquanto para os avançados a do castelo é perfeita. E a do jardim funciona melhor porque a primeira coisa que todo iniciante tem de enxergar é justamente quão mal cuidado está o jardim da sua alma, abandonado, repleto de ervas daninhas e plantas descuidadas que perderam sua forma e formosura.
A metáfora do jardim comunica melhor o quanto de esforço inicial é preciso, algo essencial para o primeiro grau de oração, que está não apenas em “entrar” no jardim, mas em agir para limpá-lo das ervas daninhas e sujeiras, podar as plantas, plantar novas. Trata-se aqui da ascese, sem a qual nenhuma mística é possível. Da ascese Santa Teresa não se ocupa no Livro da Vida, mas no seu Caminho de Perfeição, razão pela qual este é mais indicado para os iniciantes começarem de fato a trilhar este caminho. Mas isso não significa que, primeiro, trilha-se o caminho ascético, de mortificação etc., para só depois se iniciar na vida de oração. Não, se sem a ascese não tem mística, sem a oração (princípio da vida mística) não há ascese que dure e vá longe.
A primeira coisa que todo iniciante tem de enxergar é justamente quão mal cuidado está o jardim da sua alma, abandonado, repleto de ervas daninhas e plantas descuidadas que perderam sua forma e formosura
O primeiro grau de oração, portanto, tem mais de ascese que de mística, mas o pouco desta é indispensável para aquela ser realizada. Aí entra a metáfora maravilhosa usada pela santa. Além de começarmos a cuidar do jardim, precisamos irrigá-lo para que as plantas possam crescer, dar flores e frutos. Eis a água da oração, metáfora da graça de Deus, que neste início precisa ser procurada, abrindo-se um poço no terreno até ser encontrada. Como se faz isso, saindo da metáfora? Primeiro, criando um ambiente propício à introspecção para se colocar diante de Deus, ainda que não se faça ideia se será capaz de percebê-Lo e discerni-Lo de seus próprios pensamentos, sentimentos, da imaginação.
O esforço, então, é para aquietar essas faculdades, essas potências da alma, para o que serve o uso de recursos como orações vocais prontas, como o Pai Nosso, procurando se concentrar no sentido das palavras; ou leituras espirituais, com reflexão sobre o que se está lendo. Santa Teresa durante anos se valia de leituras assim. Gosto de descobrir como outros “chegam” na água, santos e não santos. Comigo, além de música, que me ajuda a silenciar o entorno, acalmar os sentidos e ensimesmar-me, costumo me valer de orações que demandam trabalho da imaginação, como o terço e a Via Sacra. E aí me esforço por apenas ficar diante das imagens, meditando sobre elas. As que melhor “funcionam” são as da Paixão de Cristo. Acontece exatamente como Santa Teresa descreveu: “se meditamos demoradamente no que o Senhor passou por nós, somos movidos à compaixão, e esse sofrimento e as lágrimas que dele brotam são muito doces”. Eis a água do poço, algo afetivo mesmo.
O segundo grau exige menos esforço, é como se tivéssemos um mecanismo tirando a água do poço. É quando, mais do que ser movido, você sente uma presença que vai aos poucos lhe aquietando: a concentração exige menos esforço, o pensamento não fica saltando de lá para cá, a imaginação sossega, a vontade vai se recolhendo e a “água” vem com abundância. Nas palavras da santa: “o entendimento opera aqui de maneira muito gradual e tira muito mais água do que tirava do poço. As lágrimas que Deus aqui oferta fluem deliciosamente; ainda que sejam sentidas, não são provocadas. (...) Quer Deus, por Sua grandeza, que esta alma saiba que está tão perto de Sua Majestade que já não tem necessidade de Lhe enviar mensageiros, mas pode falar ela mesma com Ele, e não em voz alta, porque já está tão perto que basta mexer os lábios para que Ele a entenda”.
A partir daqui, os demais graus tratam de uma proximidade ainda maior com Deus, até a união da alma Nele, quando então se pode falar em êxtase, arrebatamento. Já não se trata de tirar a água, mas dela “vir”, seja por um rio que se descobriu passando ao largo do jardim ou da chuva que Deus envia copiosamente, sem esforço da alma. Mas aí, por mais bem descrito que isso esteja no Livro da Vida, é chegada a parte em que “minha linguagem será bem obscura para quem não tiver experiência disso”. A santa deixou esta advertência antes mesmo de falar do primeiro grau, quanto mais não valeria ao chegarmos ao terceiro.
Por isso, prefiro aqui não avançar, mas retroceder. Porque, ao chegar ao fim da descrição desses graus de oração, a santa retorna ao começo, à nossa sede e falta de “água”, lembrando que a porta de entrada deste jardim é o olhar para Cristo, mais especificamente a Humanidade de Cristo, segundo ela. E assim retornamos às orações vocais sem saber ao certo se está funcionando, se é assim que se faz, se algo mais deveria acontecer, se o “nada” não significaria que estamos fazendo tudo errado. Retornamos, enfim, à cruz da oração, chamada aridez espiritual. Que é, na realidade, uma bênção de Deus.
Porque pela aridez Ele está nos ensinando a sermos pobres de espírito, humildes, levando-nos a abraçar a cruz por amor ao crucificado, não por nós. O primeiro grau da oração, no fim das contas, “consiste não em buscar consolo e deleite na oração (...), mas em ter consolação nos tormentos por amor d’Aquele que os sofreu por toda a sua vida; e devemos suportar esses tormentos e nos mantermos serenos em meio a provações e agruras”. Oi, pandemia.
Termino com Santa Teresa: “Quero então concluir com isto: sempre que pensarmos em Cristo, lembremo-nos do amor com que Ele nos fez tantas dádivas e quão grande nos mostrou ser o amor que nos tem ao dar-nos uma tal bênção, pois amor gera amor. E, ainda que estejamos muito no princípio e sejamos muito ruins, procuremos ir olhando sempre para isso e despertando-nos para amar; porque uma vez que o Senhor nos conceda a dádiva de que esse amor se grave no coração, tudo nos será fácil e avançaremos muito rapidamente e sem muito esforço. Dê-nos Sua Majestade esse amor – pois sabe o muito que nos convém – pelo amor que Ele teve por nós e pelo Seu glorioso Filho, que, tanto à sua custa, no-lo mostrou. Amém.”
Entremos, enfim, no jardim:
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