“Daqui pra frente é outro livro novo, digo, outra vida nova”, disse Santa Teresa depois de ter passado 13 capítulos compondo um minitratado de teologia mística, falando dos graus de oração, do que tratei na coluna passada. E é impressionante como realmente a sensação do leitor ao fim desse minitratado é de algo realmente novo, como se a parte da vida contada antes tivesse não ficado no passado, até porque a santa antecipou coisas que voltará a narrar nos capítulos à frente, mas abarcada em outra forma, a forma de uma conversão.
O famoso pregador metodista John Wesley tem uma frase magnífica sobre isso: “A conversão tira o cristão do mundo; a santificação tira o mundo do cristão”. E os graus de oração que Santa Teresa apresentou no seu Livro da Vida correspondem, analogamente, a essa dupla conversão. Os dois primeiros graus servem ao cristão saindo do mundo, enquanto os dois seguintes significam a tirada do mundo de dentro do cristão, unindo-o a Cristo. Nas palavras da santa: “A vida que desenrolou-se até então era a minha. Já a que passei a viver desde que comecei a explicar essas coisas de oração é a que Deus vive em mim, ao que me parece, porque reconheço que me seria impossível, em tão pouco tempo, abandonar tão maus costumes e obras. Seja o Senhor louvado, pois me livrou de mim mesma”.
Como saber se quem responde a oração não sou eu mesmo projetando imaginativamente as coisas? Pois diz Santa Teresa que, quando é Deus, não há dúvidas
Se, no minitratado, a compreensão do terceiro e quarto graus de oração é difícil para iniciantes e inexperientes, o que a santa narra na sequência é justamente suas experiências nesses graus, o que me parece ajudar muito mais a, pelo menos, imaginar como seria isso, “esse falar de Deus à alma”. A mim, a melhor “explicação” foi a analogia do ouvir e do falar: “Porque quando falo, como já disse, vou ordenando as palavras com o entendimento; mas se falam comigo, não faço mais do que ouvir, sem trabalho algum”. Aqui a santa está discernindo a fala de Deus da projeção da sua própria fala, através da imaginação e pensamento, como se fosse Deus. Rezar é, num primeiro momento, “falar sozinho”. Como saber se quem responde não sou eu mesmo projetando imaginativamente as coisas? Pois diz a santa que, quando é Deus, não há dúvidas: “No primeiro caso, ouvimos algo que não podemos determinar bem se é verdade ou não, como se estivéssemos meio adormecidos; no outro, é uma voz tão clara que não perdemos uma única sílaba daquilo que nos é dito”.
São várias as experiências concretas que a santa narra, não só de escutar Deus, mas de sentir a sua presença concreta: “Parecia-me que Jesus Cristo andava sempre ao meu lado, e como não era visão com imagens, não via sob que forma, mas sentia muito claramente estar Ele sempre ao meu lado direito e testemunhar todas as minhas ações; bastava que eu me recolhesse um pouco, ou não estivesse muito distraída, e não podia ignorar que Ele estava junto de mim”.
Agora, imagine uma freira “comum”, como todas as demais, começando a falar dessas coisas que somente adiantados espiritualmente falavam, santos mesmo? Entrar para um convento pode significar sair do mundo, mas não que o mundo saiu de dentro das reclusas. Logo, a maledicência começou a correr a respeito de Teresa. Para complicar, não havia orientadores avançados espiritualmente o suficiente para lhe dirigir. Teresa começou a sentir grande temor de que não fosse coisa de Deus, mas coisa da cabeça dela, ou pior, do demônio. Esses temores lhe atrapalharam demais, tendo ela se afastado da oração por várias vezes, inclusive por longos intervalos de tempo, coisa de anos: “Muitas coisas havia para me tirar o juízo, e algumas vezes me via num estado em que não sabia o que fazer, a não ser erguer os olhos para o Senhor, pois a oposição de boas pessoas a uma mulherzinha ruim, fraca e tímida como eu, embora possa parecer sem importância quando assim descrita, foi uma das maiores provações que enfrentei na vida, e posso dizer que enfrentei algumas extremamente severas”.
Por graça de Deus, os confessores que teve a ajudaram a encontrar remédio para seus temores, devolvendo-a à oração, plantando-a no solo firme da penitência e orientando que “começasse sempre a oração por um passo da Paixão e, se depois o Senhor me levasse o espírito, que eu não Lhe Resistisse, mas deixasse que fosse levado por Sua Majestade, não me esforçando por isso eu mesma”. E daí vieram arrebatamentos, sendo o mais importante, nesse período, um em que Jesus lhe disse: “Já não quero que tenhas conversas com homens, mas apenas com anjos”. Ao que ela completou: “Desde aquele dia, passei a ter a coragem de largar tudo para entregar-me a Deus, que, naquele instante – e me parece que tudo não durou mais que um breve instante – quis transformar outra pessoa em Sua serva”. Eis a segunda conversão, que tira o mundo da alma, santificando-a em Cristo.
Meditando sobre tudo isso, tentando me examinar constatando quão iniciante sou nessas coisas, com o que mais me identifico é o medo de Teresa, que me ajuda a entender o medo que sinto. Porque não tenho temor do inferno, sendo bem sincero da minha miséria. Isso não me faz “não pecar”. Do que tenho medo mesmo é de Deus. Mas não Dele me mandar pro inferno. Se mandar, é porque mereci. Do que tenho medo é de estar na sua presença e Ele me falar um treco desses, de eu não mais conversar com os homens, só com os anjos. Medo de eu não querer fazer o que Ele quer que eu faça. É disso que tenho medo, de descobrir quão soberbo sou, mesquinho, egoísta, e fingidor. O quanto a entrega foi, no máximo, para tentar sair do mundo, mas não para tirar o mundo de dentro de mim.
No primeiro mistério do Santo Rosário, meditamos sobre a visita do anjo Gabriel a Maria, quando ela se estremece de medo diante de sua aparição. E, ao escutar o que Deus lhe pedia, respondeu: “Mas como?” Só depois de escutar “nada é impossível para Deus”, deu seu aceite, sua entrega: “Eis aqui a escrava do Senhor, faça-se em mim segundo a Tua Palavra”. O meu medo é ser ruim a esse ponto, ao ponto de dizer não ao Amor por amor de mim. E, se este é meu medo, eis o tamanhico da minha fé. Que Deus me perdoe e salve.
O meu medo é ser ruim ao ponto de dizer não ao Amor por amor de mim. E, se este é meu medo, eis o tamanhico da minha fé
Escrevi o que vai acima escutando Kanye West. Sim, o rapper que em 2019 revelou sua conversão a Cristo, para espanto do show business. Numa entrevista a Jimmy Kimmel, em famoso programa de tevê norte-americano, assim respondeu à pergunta sobre se a partir dali ele seria um artista cristão: “Agora eu sou TODO CRISTÃO!”. Lançou, no mesmo ano, um disco cujo título se basta: Jesus é Rei. Uma de suas músicas, a minha preferida, chama-se God Is (“Deus é”). Nela, West afirma sua fé com uma firmeza que, Deus queira, não seja fogo de palha. Mas, ainda que acabe sendo, caindo pelo caminho, essas canções permanecerão, sendo de Deus. Que nos inspirem a ter a coragem da entrega real a Deus, saindo do mundo para, com humildade, perseverança e muita oração, tirar o mundo de dentro de nós. Santa Teresa, rogai por nós.
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