Já ouviu falar em aridez espiritual? Sabe do que se trata? É algo que acontece a todo mundo. Aos que têm fé e rezam, de vez em quando passam por essa provação para mais e melhor crescerem espiritualmente, algo que Deus permite desde o início da caminhada, durante e ao seu “final”, com a chamada “noite escura da alma”. Claro que Ele não dá o que não podemos suportar, então não há comparação possível entre a aridez sofrida por iniciantes com a noite escura da alma dos santos. E, por falar em santos, se Santa Teresa D’Ávila é quem melhor descreveu psicologicamente a experiência da oração, por certo também teria de descrever o que se passa quando os que têm fé padecemos de aridez:
“Aqui, a fé se encontra tão embotada e adormecida quanto as demais virtudes, apesar de não estar perdida, pois acredita firmemente naquilo que é sustentado pela Igreja. Porém, embora afirme sua crença com a boca, parece estar oprimida, entorpecida, e sente como se conhecesse Deus apenas como algo que ouviu falar ao longe. Tem um amor tão morno que, se ouve falar d’Ele, escuta como uma coisa que crê ser assim apenas porque o diz a Igreja, mas não tem memória daquilo que experimentou em si. Ir rezar ou ficar em solidão só serve para lhe causar mais angústia (...).
Ao querer buscar remédio na leitura, é como se não soubesse ler. Uma vez aconteceu-me de ir ler a vida dum santo para ver se absorvia e me consolava com o que ele sofreu, mas depois de ter lido quatro ou cinco vezes outras tantas linhas, mesmo escritas em espanhol, entendia menos delas no fim do que no princípio, e assim o deixei de lado. Isso me aconteceu muitas vezes (...).
Deus permite esses períodos de aridez para que se revele, mais do que tudo, nosso orgulho manipulado pelo demônio travestido dessa falsa humildade que faz achar que somos piores do que somos
Ainda pior é travar uma conversa com alguém, porque o demônio incute em minha alma um espírito tão desagardável de ira que me parece a todos que eu os quereria comer, sem que eu o possa evitar. (...) Ir ao confessor, então, é certamente inútil. (...) Algumas vezes me parecia que os enganava, e então ia avisá-los de verdade para que tomassem cuidado comigo, pois podia ser que os estivesse enganando. Bem via eu que não o faria propositalmente nem lhes diria, mas tudo me dava medo. (...)
Só me ficavam uma alma e um corpo totalmente inúteis e pesados; mas não tinha, com isso, essas outras tentações e desassossegos, a não ser um desgosto, sem entender por quê, e em nada contentava-me a alma. Tentava então fazer boas obras exteriores para me ocupar um tanto à força, e reconheço bem o pouco que é uma alma quando se esconde a graça. (...)
Outras vezes, acho-me de um jeito que não consigo formar um pensamento bem ordenado sobre Deus nem sobre o Bem, e tampouco ter oração, ainda que esteja em solidão. Mas sinto que O conheço. Percebo que o entendimento e a imaginação são o que aqui me prejudica, pois a vontade me parece que está boa e disposta a todo o bem. Mas esse entendimento está tão perdido que não parece senão um louco furioso que ninguém consegue atar, e meu poder sobre ele não é suficiente para mantê-lo quieto nem por um breve instante. (...) Tenho grande pena de ver a alma em tão má companhia. Desejo vê-la com liberdade, e assim digo ao Senhor: ‘Quando, Deus meu, chegarei finalmente a ver minha alma toda unidade em Vosso louvor, de modo que todas as potências possam fruir de Vós? Não permitais, Senhor, que seja jamais despedaçada, pois parece que cada pedaço dela anda para um lado’.”
Não sei você, leitor com fé, mas lendo essas coisas, fico consolado. Porque, ao ver que algo assim acontece até com alguém como Santa Teresa, quanto mais a tipos como eu. E com ela aprendemos que a causa da aridez é, em parte, fruto de pecados ainda não encarados ou combatidos, e a própria santa diz isso: “E a culpa deve ser dos meus pecados, pois, se não os tivesse cometido tantos, estaria mais inteira do bem”. Mas a principal causa é daquele que usa desses pecados para instilar na alma “uma humildade falsa, inventada pelo demônio para desassossegar-me e tentar levar minha alma ao desespero. (...) Isso se vê claramente pela inquietação e desassossego com que começa, no alvoroço que provoca na alma por todo o tempo que dura, na escuridão e aflição em que a submerge e na aridez e má disposição para a oração e para qualquer bem. Tem-se a impressão de que afoga a alma e amarra o corpo para que de nada aproveite. (...) Essa é, dentre as que eu já vi, uma das mais penosas, sutis e dissimuladas invenções do demônio”.
Ou seja, Deus permite esses períodos de aridez para que se revele, mais do que tudo, nosso orgulho manipulado pelo demônio travestido dessa falsa humildade que faz achar que somos piores do que somos, impenitentes, imperdoáveis, que toda consolação antes recebida foi fruto da imaginação, que “não sente” Deus ou algo assim. E ler Santa Teresa também é se deparar com o remédio de toda a aridez: “ainda que a alma se reconheça ruim e nos aflija vermos o que somos, e que nossa maldade nos pareça ser da pior espécie – tão ruim como acabamos de descrevê-la –, a humildade verdadeira não provoca turbulência na alma, nem a desassossega, nem lhe traz escuridão ou aridez; o que se dá é justamente o contrário: ela presenteia com quietude, suavidade e luz. É um sofrimento que, por outro lado, traz conforto, pois vê-se a grande dádiva que Deus faz à alma ao lhe dar aquela tristeza, e quão bem empregada ela é. Dói-lhe ter ofendido a Deus e, por outro lado, a Sua misericórdia a expande”.
Mas a aridez não afeta apenas aos que têm fé em Deus. Também naqueles que têm fé no Nada, a aridez se instala, não por alguns períodos, mas sim como um estado de vida, empacotada em tanto orgulho que faz parecer tudo que vai acima, tão grande Misericórdia, em uma loucura completa. O desassossego da alma aí aparece como tédio, angústia vaga e indefinida, falta de sentido na vida, indiferença, ressentimento que vaza da alma como cinismo, indignação profunda contra injustiças justificando vinganças, e por aí vai. Não raro, quando o desespero se torna insuportável, são os que transformam meios em fins, fazendo de meditações, terapias de todo tipo, gurus, a própria “solução”, achando uma adaptação provisória para mascarar o orgulho.
Inclusive, voltar-se a Jesus nessas horas, algo bem comum com quem passa por alguma grande tragédia ou perda na vida, pode ser apenas essa humildade falsa se não houver real conversão. Porque neste momento, você não O procura por Ele, mas por você. O critério é ainda você: ser consolado, ser ajudado. Ainda estamos no terreno do amar a si sobre todas as coisas, do orgulho que precisará ser confessado e enfrentado. Sei do que falo, já passei por isso. Quando tinha de 17 para 18 anos, já sentia o ranço pela vida, sintoma claro de vazio, e mesmo sem saber direito o que se passava comigo, sabia que precisava procurar alguma coisa que me desse um rumo na vida. Aceitei participar de um encontro para jovens católicos, chamado Acampamento. E foi uma bênção, ajudou-me muito e logo quis fazer parte do embrião de comunidade que ali se criava.
Mas logo desisti. No acampamento seguinte, meses depois, quando participava da organização, senti profundo incômodo porque me sentia uma fraude completa. Afinal, falávamos de Jesus o tempo todo, mas onde Ele estava? Eu não O sentia, não tinha qualquer autoridade mínima para falar Dele, nem sequer O conhecia de fato. Em uma das reuniões da equipe, não aguentando mais, disse o que sentia, crente que me mandariam embora. Ficou um silêncio. Até que uma das principais condutoras disse: “Ele é sincero, né, gente”. E tomei um susto. Porque não tinha me dado conta de que estava sendo mesmo. Até ali, achava-me um “criminoso” torturado pela culpa, mas, ao confessar a minha verdade, não veio um castigo; pelo contrário, veio paz de espírito, quietude. Não entendi na hora, mas lendo sabedorias como a de Santa Teresa é que me dou conta de que foi uma gota de humildade verdadeira, que só pode nascer desta verdade mais íntima, por pior que ela seja, mas que, quando confessada, torna-se humildade verdadeira no ato.
Contudo, como pouco entendia dessas coisas à época e não havia quem de fato pudesse me orientar espiritualmente, aquele momento ficou sendo justamente apenas um momento, guardado em minha memória como algo muito significativo, ainda que esse significado não soubesse exatamente qual fosse, muito menos expressá-lo. Ficou como um símbolo que, em momentos de aridez muito piores do que aquele, como atualmente, sua lembrança vem como uma placa de trânsito a indicar a direção. E por isso sou muito grato àquela pessoa que foi instrumento da Misericórdia naquele momento, revelando que, por pior que me sentisse, havia o bem em mim que me fazia sincero, ainda que só por aqueles minutos.
A causa da aridez é, em parte, fruto de pecados ainda não encarados ou combatidos, e a própria Santa Teresa diz isso
Escrevi esta coluna escutando uma música do novo disco lançado por aquela pessoa, a Ziza Fernandes. Naquela época, 26 anos atrás, ela mal tinha lançado seu primeiro disco e ainda não havia se tornado a famosa cantora católica que se tornou. E foi por ela também, naqueles Acampamentos, que escutei pela primeira vez algumas músicas que desde então me acompanham. Algumas ela revisitou agora no seu novo trabalho, todas compostas por Martin Valverde, como Glória, Ninguém te Ama como Eu, Te louvo em Verdade e Diário de Maria, para citar algumas que gosto mais. Mas, para hoje, apenas Nestes Momentosficou no repeat, por ser sobre aridez: “Nestes momentos, quando tudo me custa. Nestes momentos em que não é fácil seguir. Quando quero sentir-Te e ver-Te ao meu lado, às vezes me sinto tão desanimado. Nestes momentos, quando tudo escurece. Nestes momentos, quando nem eu mesmo me entendo”.
Não participei mais daqueles acampamentos. Não segui com o grupo formado que depois se tornou uma comunidade católica. Só voltei a reencontrar alguns, inclusive a Ziza, uns 15 anos depois daquilo, quando trabalhamos juntos num projeto que foi, tenho certeza, a maior provação espiritual de nossas vidas até aqui. Tudo acabou muito mal, mas desse mal Deus tirou vários bens, como um novo monge, alguns convertidos a Si, dentre outros frutos, como o retorno da Ziza à música em 2014, com seu EP Segredos, que gentilmente ganhei de presente e no qual releio nos agradecimentos: “Ao meu Deus, que me ama de uma forma estonteante, meus segredos, meus diamantes em forma de lágrimas, alegria e música... Voltar... não há nada melhor!”
Depois de toda aridez, voltar... Que Santa Teresa nos guie: “Mil vezes me impressionei com isso, e dez mil vezes quereria fartar-me de chorar e expor a todos a minha grande cegueira e maldade, a fim de que isso lhes pudesse servir, quem sabe, para abrirem os olhos. Que os abra Aquele que, por Sua bondade, pode fazê-lo, e não permita que se tornem a cegar os meus. Amém.”
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