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Embora o Livro da Vida seja uma autobiografia de Santa Teresa D’Ávila, escrita a pedido de seus confessores para que fosse uma confissão geral de sua vida até aquele momento, ao estilo das Confissões, de Santo Agostinho, tornou-se outra coisa à medida que escrevia, um Livro das Misericórdias do Senhor, como a própria santa passou a chamá-lo.
De fato, tirando o início, quando narra passagens de sua infância e um intervalo no fim da obra, quando conta sobre a fundação do convento de São José de Ávila, tudo o mais, a grande maioria, é descrição da sua experiência de oração, terminando com várias das grandes graças místicas que recebeu de Nosso Senhor, sendo talvez a mais conhecida a chamada transverberação, por ter sido esculpida na famosa escultura de Bernini, também conhecida como O Êxtase de Santa Teresa, considerada uma das maiores obras-primas do barroco.
Jesus está aqui conosco... Como entender algo assim? Segundo Santa Teresa, não há como sem experimentar a oração
Se puder, pare diante desta imagem, leitor, e a contemple por um tempo maior que o da curiosidade satisfeita. É uma escultura impressionante por ser muito fiel à descrição dada pela santa no livro, que conseguiu esculpir em palavras uma experiência incompreensível a quem não possua ao menos um mínimo de experiência de oração. Ler o Livro da Vida é ser convidado a participar de uma oração contemplativa na qual ficamos diante da santa como diante desta escultura, calados por dentro, maravilhados diante do que nos é mostrado.
Quando isso realmente acontece, entendemos, por exemplo, por que e como a escritora Edith Stein, hebreia de nascimento, depois de ler de um fôlego só o Livro da Vida, em 1921, exclamou: “Aqui está a verdade”. Por consequência, converteu-se ao catolicismo, entrando para o Carmelo, adotando o nome de Teresa Benedita da Cruz, em homenagem à santa, sendo canonizada em 1998. Morreu vítima dos nazistas, na câmara de gás em Auschwitz, tendo dito no fim: “Aconteça o que acontecer, estou preparada. Jesus está aqui conosco”.
Jesus está aqui conosco... Como entender algo assim? Segundo Santa Teresa, não há como sem experimentar a oração: “Engana-se quem pensa que no decorrer dos anos havemos de entender o que de nenhum modo se pode alcançar sem experiência. Assim – como disse – muitos se equivocam ao pensar que podem conhecer o espírito sem tê-lo”. Isso não significa dizer que será preciso anos e anos de oração, como ela própria explica: “isso são dons que Deus dá quando quer e como quer, não importando nem o tempo nem os serviços prestados. (...) muitas vezes, o Senhor não dá em 20 anos a contemplação que a outros dá em um. Sua Majestade sabe a causa”. E completa: “Não se espante ninguém com isso, tampouco pense que são coisas impossíveis – tudo é possível para o Senhor –, mas procure fortalecer a fé e manter a humildade diante do fato de que o Senhor talvez faça uma velhinha ser mais versada nesta ciência que o mais letrado dos sábios, por mais culto que seja”.
Ao terminar a leitura, fiquei a refletir se alguma vez tive algo minimamente próximo de alguma experiência mística como a de Santa Teresa. Não digo êxtases e arrebatamentos, que nunca tive, mas de um recolhimento e quietude em que se sente, se percebe, que Jesus está ali, aqui. Quando nada é preciso ser falado, nem pensado, apenas contemplado. Consegui me lembrar de algumas comunhões em missas, por pouco tempo, em que isso me aconteceu. Mas uma, em particular, guardo no coração com mais carinho.
Foi alguns dias ou semanas depois de ter feito minha primeira comunhão, aos 10 anos de idade. Fui à missa de domingo apenas com meus pais, sem meus irmãos. Recordo menos da hora da comunhão do que da volta para casa. Morávamos próximos, coisa de duas quadras da igreja de Santo Agostinho, onde anos depois eu me casaria e alguns anos mais batizaria meus filhos. Em minha memória estou vestido inteiramente de branco, calça e camisa polo, com um sapato dockside amarelo claro. Tinha sido a minha roupa da primeira comunhão, mas sei que não a usava naquele dia. Se assim lembro é porque sei que foi ali, depois daquela missa, que tive minha primeira comunhão de verdade, quando, depois de recebido o corpo de Cristo, voltávamos a pé, eu de mãos dadas entre meus pais.
Era uma manhã luminosa. Quando lembro, nunca sou a criança, mas vejo como alguém que vai logo atrás daquela família, contemplando a cena. Sempre me comove. Porque sinto novamente não só a paz serena e profunda que sinto quando comungo, mas o Amor que nos envolvia. Não falávamos nada, mas nosso amor se comunicava de um para outro e os três em Deus. Mais do que isso, não consigo expressar. Mas sinto que Santa Teresa me sorri. Porque aquilo, isso, é a verdadeira oração. Quando há amor na alma, a oração é sempre uma oportunidade à espera da nossa vontade.
Foi em busca deste amor em minha alma que li o Livro da Vida nesta Quaresma recém-encerrada. A aridez era grande, ainda é, acho. Mas reencontrei o que buscava, Deus seja louvado. Também muito ajudado pelas músicas que me acompanharam na escrita desses textos, que em cada qual deixei registrada qual foi. Porque aprendi com a santa que preciso de instrumentos para conseguir rezar. Ela usava da leitura de livros espirituais, eu apelo à música que me move o coração antes do que o entendimento.
E à medida que ia reencontrando na memória o Amor que não abandona, fui me lembrando das músicas da infância cantadas nas novenas de Natal, várias do padre Zezinho. Há quantos anos não as escuto? Nem sabia o nome delas, como procurar, quais seriam. Mas não foi preciso esforço. Foi só pesquisar que vieram todas, uma depois da outra, devolvendo-me à infância, não apenas à que vivi, mas à espiritual, aquela de que fala outra Teresa doutora da Igreja, a Santa Teresinha do Menino Jesus.
Quando há amor na alma, a oração é sempre uma oportunidade à espera da nossa vontade
Não haveria Teresinha sem Teresa. Aquela é um dos claros frutos da reforma carmelita empreendida séculos antes por Santa Teresa D’Ávila. Das alturas a que Santa Teresa nos leva com a descrição de seus êxtases e arrebatamentos, à simplicidade infantil de Santa Teresinha a dizer que a oração é como “uma respiração de amor”, algo possível de se fazer com “um simples olhar para os céus, um grito de gratidão e de amor, seja em meio à prova como no seio do gozo”, não há contradição, apenas continuidade que chega até nós hoje e, se Deus quiser, seguirá também pelos séculos dos séculos.
Mas Santa Teresinha fica para uma outra Quaresma. Até lá, quem sabe eu tenha aprendido a rezar mais e melhor. Por enquanto, retomo a uma oração da infância, feita em forma de canção, com a qual me despeço abaixo, não sem antes desejar a todos os leitores que pacientemente me acompanharam aqui nesta série de colunas meu mais sincero desejo de que tenham uma feliz e Santa Páscoa. Deus os abençoe e seja louvado. Santa Teresa D’Ávila, rogai por nós!
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos