Não se é brasileiro impunemente. Ainda mais se você foi criança e adolescente nos anos 80, cada vez mais reconhecidos como “Trash 80’s”, não sem certa (muita?) dose de razão.
Aliás, se tem algo que nós, brasileiros, sabemos fazer como ninguém é desperdiçar décadas. Estamos aí testemunhando mais do que uma década supostamente gloriosa do petismo se revelando tão sustentável ou verdadeira quanto a nave espacial com que a Xuxa chegava e ia embora no seu programa matinal oitentista. Plunct, plact, zum, nunca vamos a lugar nenhum, embora sempre pareça que “agora vai”, só que não.
A história brasileira das últimas décadas ainda está por ser contada como se deve, aliás. Por enquanto, temos mais as chamadas “fontes primárias”, ou seja, depoimentos ou estudos de quem viveu e fez parte da história, como, no caso do cenário musical, Lobão, que acaba de lançar um Guia Politicamente Incorreto dos anos 80 pelo Rock, que é menos um guia do que uma narrativa do ponto de vista pessoal do autor, como ele próprio afirma em seu prólogo.
Para quem viveu nessa época, tanto faz a idade, é leitura obrigatória. Para quem viveu em qualquer época, é leitura no mínimo curiosa e muito divertida. Lobão acertou o tom com que fala de tudo e todos, tanto dos amigos poupados como dos desafetos perdoados ou não. Em entrevistas recentes, confessou que seu intento antes de escrever era demolir com tudo e todos, porém, ao revisitar os discos e conversar com colegas e amigos, quem foi demolido foi seu intento. A misericórdia venceu o rigor, sem descartá-lo.
A distância no tempo não deixou dúvidas a Lobão: tivemos talentos, criatividade, boas músicas e grandes discos. Mais do que uma década produtora de lixo, houve desperdício do que deveria ser mais respeitado e muito melhor produzido, mas foi apenas sugado e descartado quando deixou de dar dinheiro.
Lobão escreveu o livro escutando os discos e músicas abordados e, se o leitor tem menos interesse na narrativa pessoal do que num guia para conhecer melhor o rock brasileiro dos anos 80, o livro se torna isso também se for lido como foi escrito: escutando as músicas e discos na ordem apresentada. Aliás, recomendo enfaticamente seja lido assim.
A mim interessa mais a narrativa pessoal mesmo. Eu, que só tinha uma imagem do Lobão mau, ou seja, do drogado perigoso, rancoroso, vaidoso, paranoico e chato, descobri que essa imagem é igual Denorex: parece, mas não é.
Escutando seus discos daquela época acompanhados de seu relato, fica nítido que o drama de Lobão desde sempre foi o da busca por uma identidade própria, daí o valor imenso que sempre deu à autenticidade, o que explica sua ojeriza a Herbert Vianna. É mais do que compreensível a fúria de Lobão em relação às “chupadas” que Herbert fez de algumas de suas criações, mas, em uma época em que todo rockeiro brasileiro se inspirava ou imitava explicitamente algum estrangeiro, atire a primeira pedra quem conseguiu ser original. Essa imitação, aliás, ia muito além das músicas, mas também no modo de ser. Assista, por exemplo, a Morrissey e Renato Russo dançando nos shows e tente encontrar diferença.
Isso não significa que os artistas fossem farsantes, mas que ainda estavam criando sua própria identidade. Escutando as músicas que Lobão aponta sobre a treta com Herbert, é difícil não lhe dar razão, pois Herbert parece mesmo emular descaradamente Lobão – especialmente o jeito de cantar –, mas a própria história musical dos Paralamas do Sucesso demonstra que Herbert, tal qual Lobão, também foi se tornando autoral com o tempo, deixando de ser cópia para se revelar um talentoso compositor e letrista com voz própria, além de bom guitarrista. Inclusive, Lobão reconhece isso no livro. O que, é claro, não perdoa nem diminui as “chupadas” não assumidas por Herbert. Rigor e misericórdia.
Digo tal qual Lobão porque em seus dois primeiros discos, Cena de Cinema e Ronaldo foi pra guerra, ele tampouco tinha identidade própria. Escutamos o mais do mesmo do estilo new wave que, no Brasil da época, parecia uma nova jovem guarda descompromissada de tudo e inocente de todo, com letras fúteis e músicas para embalar festinhas, não muito mais do que isso. Tanto era assim que ele não queria ser artista solo, sempre querendo ser parte de uma banda.
Mas, ao gravar seu terceiro disco, Lobão decidiu aceitar seu destino de lobo solitário e pretendia se destacar de todas as demais bandas que soavam muito semelhantes entre si, tentando criar identidade própria. Em suas próprias palavras no livro, queria “tentar formar um perfil que finalmente pudesse englobar o rock como também todas as minhas influências” (p. 265).
E assim nasceu O Rock Errou, que inicia com a música que lhe deu título e na qual Lobão afirma, não sem autocrítica: “Eu sei que o rock errou / Acho que é melhor passar a borracha / Ninguém é perfeito, você não acha?”. No mesmo ano, em 1986, foi preso por posse de cocaína (0,8 decigramas), seria condenado anos depois e teria de fugir para fora do Brasil, ganhando a imagem de “lobo mau” que foi impressa no imaginário brasileiro durante muitos anos, o que transformou Revanche, um dos hits do disco, em algo maior, com ele confessando ter ficado mais de 30 anos com “bode” dessa música por lhe lembrar a via crúcis que viveria a partir dela, em que se perguntava: “Quem é que vai pagar por isso?”.
Ele mesmo, claro. Como nos conta no livro, a busca por uma identidade própria ainda estava longe de acabar. Nessa época, ainda “não era exatamente um cantor, nem um letrista, ou sequer um guitarrista. Eu funcionava apenas com o meu mínimo e isso já estava me deixando irritado. (…) A minha maior obsessão era conseguir sonoridade própria no estúdio”.
Para tanto, era preciso fazer tudo sozinho: tocar todos os instrumentos, a voz, a produção. Naquele contexto, impossível. Somente com o tempo ele iria conseguir obter a condição ideal para seu trabalho, o que acredita só ter acontecido muito recentemente, nos últimos dois anos.
De O Rock Errou em diante, a separação de Lobão do seu meio musical somente foi se intensificando, com ele se tornando um outsider na década de 90. Pagando o preço do ostracismo, sua perseverança o tornou mais do que um sobrevivente dos anos 80, mas o mais digno representante do rock dos anos 80, sendo muito mais criativo do que todos os outros, não vivendo apenas das glórias do passado e criando, enfim, uma identidade própria.
Em A Nostalgia da Modernidade, álbum de 1994, todas as suas influências passam a soar coerentes entre si, tomando uma forma própria, continuada em A Noite, de 1996, e cristalizada no sublime A Vida é Doce, de 1999, em cuja faixa-título confessou: “Eu fui a coisa mais brega / Que pousou na tua sopa. / Me perdoa daquela expressão pré-fabricada / De tédio, tão canastrona que nunca funcionou nem funciona / Me perdoa.”
Esse álbum fundamental termina com uma música que, para mim, é o melhor símbolo do que foi a MPB e do que ela se tornou a partir dos anos 80. A instrumental Amanhecendo na Lagoa remete imediatamente à bossa-nova e à MPB, com um pianinho doce e suave. Mas isso é apenas em sua primeira parte, pois na segunda metade é como se fantasmas zunissem, revelando que tudo está, em verdade, morto, e o amanhecer é uma ironia trágica testemunhada por alguém que poderia recitar os últimos versos de O Peso de uma Casa, de Drummond: “Sou eu só a portar o peso dessa casa / que afinal não é mais que sepultura rasa”. Confira:
Não há comparação possível entre os discos de Lobão anteriores a A Nostalgia da Modernidade com os que se lhe seguiram, todos mantendo a mesma forma original e consistente, merecendo destaque seu último: O Rigor e a Misericórdia, de 2016, cujo tom se mantém nesse seu guia politicamente incorreto dos anos 80 pelo rock, que faz boa dupla com sua autobiografia, Lobão: 50 anos a mil, lançada em 2010.
Se a autobiografia reflete o resultado do encontro do autor com sua própria identidade musical, este guia é mais um acerto de contas inesperado com essa “década perdida” do rock e com seus companheiros de geração. Inesperado porque, como dito, era para sair um acerto de contas com muito sangue e porrada, mas foi muito mais um abraço carinhoso ofertado a amigos a quem não poupou afago e bondade, e a inimigos a quem tratou com justiça sem amargura e ternura.
Enfim, rigor e misericórdia de um artista maduro que não é apenas autêntico, mas (e talvez mais ainda) íntegro, no sentido de que todas as suas partes, todos os seus lados, todos os seus lobos interiores estão integrados na sua personalidade que reluz nesses livros e músicas, como se pode constatar com mais clareza em seu disco gravado em 2007 para a série famosa da MTV Acústico, no qual músicas dos anos 80 se harmonizam às atuais sem intervalo de tempo ou qualidade: são todas músicas “típicas” de Lobão.
E porque tudo isso me deixou nostálgico ao quadrado, despeço-me dando a mão ao menino que fui nos anos 80 para cantar com o velho lobo:
Pensar em tudo que se passou, Que se pôde sonhar e não realizou A vida tentando escapar, Mas não por agora
Ao mesmo tempo tanta coisa se amou, Se refez, se perdeu, se conquistou, Retratos estampados do nosso amor, Em preto e branco, pregados na parede,
Revelando pra sempre a gente, Nosso orgulho um do outro, Olhando pra lente como quem dissesse “não queremos mais nada nesse mundo”
E que me lembrasse a cada instante Que valeu a pena cada lance, E que valerá, tenha certeza, pra toda a vida
Vou levar, vou te levar, Pra onde for, vou te levar