Nas últimas semanas andei relendo muita coisa de Gabriel García Márquez, também lendo o que ainda não conhecia dele. Era em preparação para uma viagem literária pelos lugares da vida de Gabo. No dia em que este texto for publicado, aliás, devo estar na Cartagena de Amor nos Tempos do Cólera e Amor e Outros Demônios, tendo já passado pela Macondo original de 100 Anos de Solidão, que é a cidadezinha de Aracataca.
Escrevo me imaginando a contemplar o pôr-do-sol da muralha que circunda Cartagena, pensando mais uma vez na relação entre Gabo e Vargas Llosa, dois gigantes da literatura latino-americana, meditando nas razões pelas quais me chama tanto a atenção a história da amizade que tiveram e, principalmente, depois que a romperam.
Conheceram-se pessoalmente em 1967, no aeroporto de Caracas, na Venezuela, no mesmo ano de publicação de 100 Anos de Solidão, que tanto impressionou Llosa, a ponto de este escrever sua tese de doutorado, publicada em 1971, sobre o livro. Já trocavam cartas antes, admirando-se mutuamente e, principalmente, pelo encanto em comum que tinham por Faulkner, influência fundamental para ambos.
Este mesmo ano de 1971 é também um marco na transição ideológica de Llosa, que era de esquerda, para o campo da direita liberal, em razão da realidade do que acontecia em Cuba. García Márquez, por sua vez, jamais rompeu com Fidel Castro, mesmo a par da ditadura que este impunha naquele país. Se o leitor já deu o salto para concluir que foi esta a razão para os escritores se distanciarem e romperem a amizade, devagar com o andor. Não, isso não teve nada a ver com política.
Entre 1972 e 74, Gabo e Llosa eram vizinhos em Barcelona, tornando-se próximos, bem como suas esposas. O rompimento se deu anos depois, quando já não se viam com frequência, em 1976. Um amigo de Gabo, Guillermo Angulo, contou a história à jornalista Silvana Paternostro, que a publicou na sua obra Solidão e Companhia, sobre a vida de Gabo contada por amigos e familiares.
Segundo o amigo, a briga teria sido causada pela esposa de Vargas Llosa. Este havia rompido o casamento tempos antes, envolvido com outra mulher, mas retornou para casa. Sua esposa, então, querendo lhe fazer ciúmes, disse que, enquanto ele esteve fora, vários de seus amigos teriam se interessado por ela, entre eles Gabo – que, por sua vez, teria dito a conhecidos que nunca teve nada com ela, embora ela o tivesse provocado.
No dia da pré-estreia no cinema do filme Os Sobreviventes dos Andes, em 1976, que retratava a história real do desastre aéreo cujos sobreviventes se alimentaram da carne dos falecidos, Gabo e Vargas Llosa estavam lá. Gabo, avistando o amigo, foi até Vargas Llosa para cumprimentá-lo, saudoso. Mas foi surpreendido quando, depois de dizer um sonoro “Mário!”, Vargas Llosa devolveu o cumprimento com um forte soco no seu rosto.
O soco ficou famoso, mais ainda quando as fotos do olho roxo, com Gabo sorrindo, vieram a público em 2007, na comemoração dos 80 anos de vida do colombiano. Foram tiradas no dia seguinte à briga, a pedido de Gabo, por Rodrigo Moya. Por causa do sorriso, parecia que, apesar do roxo no olho, Gabo não levara a coisa tão a sério, já tratando no dia seguinte como se fosse daquelas histórias que contamos e recontamos entre amigos nos bares da vida. Mas não foi bem assim, nem à época, nem depois. Na verdade, a ideia da foto sorridente foi do fotógrafo, cujo relato consta do mesmo livro:
“Mas o que me preocupava era que ele fingia estar de bom humor, mas as fotos mostram que ele estava deprimido. (...) Eu estava preocupado com sua expressão melodramática, e pensei nisso muito rapidamente. Satisfaria Vargas Llosa ver sua vítima ferida, destruída. O que eu queria era fazê-lo rir. (...) Ele não estava rindo por nada (...) então, de repente, algo aconteceu, eu disse alguma coisa e ele riu, e tirei duas fotografias.”
Nunca mais Vargas Llosa e Gabo voltaram a se falar. Vargas Llosa, inclusive, segundo consta desta obra, não mais teria permitido a reimpressão de sua tese de doutorado, que realmente é difícil de encontrar. Tampouco qualquer dos dois falou sobre o ocorrido, sobre a razão do soco, ou deram explicações ou mesmo trocaram acusações mútuas. Mantiveram-se calados sobre o episódio. Gabo faleceu em 2014 sem nunca ter esclarecido o que houve.
Em 2017, no cinquentenário de 100 Anos de Solidão, Vargas Llosa participou de um curso sobre Gabo na Biblioteca Miguel de Cervantes, dando uma entrevista no fim do evento falando sobre o ex-amigo, sobre como se conheceram, sobre suas relações com a ditadura cubana e sobre suas literaturas. Falou com respeito, com carinho, sinceridade e justiça sobre Gabo e sua obra, mas se recusou mais uma vez a falar sobre o soco e o rompimento.
E continua assim até hoje. Lembro de assistir a uma entrevista de Vargas Llosa, não sei de que ano, mas posterior ao falecimento de Gabo, em que lhe perguntaram se, agora que Gabo havia morrido, ele não poderia enfim contar o que tinha acontecido. Sua resposta foi algo como: “Gabo nunca contou quando vivo, não serei eu que contarei depois dele morto”.
Acho admirável. É o que tornou essa história inesquecível para mim. Não a amizade, nem o soco, o rompimento, mas esse respeito mútuo posterior, essa fidelidade mesmo na aparente inimizade, mas que, para mim, já era uma forma de reconciliação. Em 100 Anos de Solidão, há uma frase que ficou famosa: “Um único minuto de reconciliação vale mais do que toda uma vida de amizade.” Acho que será o pôr-do-sol mais belo que verei.